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  13/11/2025 - por Maria Lúcia Fattorelli





Foto: Eline Luz/ ANDES-SN 

 

Muita propaganda tem sido veiculada a respeito da nova proposta de Reforma Administrativa protocolada no Congresso Nacional – Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 38/2025 –, alardeando que ela promoveria uma modernização do Estado brasileiro. No entanto, não é isso que consta no texto da referida proposta, que representa, na prática, o risco de completo desmonte da estrutura do Estado, devido à ampliação das possibilidades de extinção de cargos e carreiras, terceirização e privatização dos serviços públicos, entregando-os à iniciativa privada, que passará a cobrar caro por todos os serviços de educação, saúde, previdência, assistência, segurança, gestão ambiental, entre outros.

 

Toda a estrutura do Estado que hoje conhecemos será alterada, com graves danos para a imensa maioria do povo brasileiro, que não consegue acessar esses serviços fora da estrutura pública. Nosso povo precisa de mais investimentos na estrutura do Estado: serviços públicos mais amplos e de melhor qualidade, e mais investimentos nos órgãos de fiscalização e controle, para que sejam aprofundadas as investigações destinadas a coibir fraudes, desvios e irregularidades.

 

O que está por trás desse desmonte é o privilégio do Sistema da Dívida, que tem consumido mais de 40% dos recursos do orçamento federal todos os anos, conforme gráfico referente ao ano de 2024:

Arte: ACD/ Divulgação

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O mais grave é que essa chamada dívida pública não tem contrapartida em investimentos no Brasil, como tem denunciado a Auditoria Cidadã da Dívida e comprovado até pelo Tribunal de Contas da União. É nos mecanismos financeiros e nos juros abusivos do Sistema da Dívida que está o verdadeiro rombo das contas públicas, e não na estrutura do Estado; no setor público que presta serviços à sociedade brasileira, que a PEC 38/2025 pretende demolir.

 

Se essa contrarreforma for aprovada, a parcela de recursos destinada às diversas áreas sociais diminuirá ainda mais, e o povo brasileiro vai ficar sem nada, tendo em vista que a imensa maioria da população brasileira não tem acesso a direitos sociais fora do setor público, pois não tem como adquirir esses serviços na iniciativa privada, que cobra caro porque visa o lucro.

 

A análise do texto da PEC 38/2025 evidencia diversos ataques aos serviços públicos, em grave prejuízo a toda a população.

 

Aprofundamento do arcabouço fiscal

 

A PEC 38/2025 acrescenta à Constituição Federal, entre outros, os artigos 28-A, 29-A e 32-A, os quais limitam o crescimento anual das despesas com pessoal nos estados, municípios e Distrito Federal ao limite ínfimo de 2,5% ao ano em termos reais, mesmo que a arrecadação do respectivo ente federado cresça muito mais que isso no período. Ao mesmo tempo, a proposta não impõe qualquer limite ou controle para os crescentes gastos com as questionáveis dívidas dos estados, que já foram pagas várias vezes, arruinando as finanças públicas.

 

Dessa forma, a PEC 38/2025 retorna, para o patamar constitucional, o insano teto de gastos sociais que vigorava por meio da Emenda Constitucional 95/2016, e que foi mantido, com algumas alterações, por meio da Lei Complementar 200/2023, que trata do arcabouço fiscal federal. Os citados dispositivos da PEC 38/2025 (artigos 28-A, 29-A e 32-A) impõem esse rígido teto para os investimentos em funcionalismo público dos entes federados. Isso é justamente o contrário do que a população precisa, pois o atendimento às necessidades sociais está muito aquém do necessário, com cirurgias acumuladas, infraestrutura de estabelecimentos de ensino inadequadas, insuficiência de pessoal qualificado, acúmulo de trabalho para os poucos servidores existentes em diversos órgãos, a exemplo do INSS, onde a sobrecarga tem levado inúmeras pessoas ao adoecimento grave e até ao suicídio, conforme dramático depoimento da servidora e diretora da Fenasps, Viviane Peres, em recente evento da ACD, além de todas as carências em investimentos em ciência e tecnologia, infraestrutura de transportes, saneamento, fiscalização ambiental, entre outras áreas sociais relevantes.

 

Concentração de definições na esfera federal e desrespeito ao Federalismo

 

A PEC 38/2025 concentra na esfera federal a definição das regras gerais para administração de pessoal de toda a administração pública direta e indireta de todos os poderes e órgãos, da União, Estados, DF e Municípios, inclusive no que se refere ao planejamento, organização, estruturação de carreiras, concursos públicos, regime e procedimentos disciplinares, aproveitamento de pessoal, políticas de remuneração, benefícios, avaliação de desempenho e reconhecimento por resultados.

 

Alguns entendem que essa uniformização e concentração de regras na esfera federal geraria “eficiência”, no entanto, considerando as profundas disparidades regionais e as inúmeras especificidades das diversas áreas do serviço público no Brasil, o resultado dessa unificação pode ser altamente desastroso. Adicionalmente, essa concentração na esfera federal retiraria de governadores e prefeitos a sua autonomia administrativa.

 

A PEC 38/2025 admite ainda que os entes federados aproveitem concurso público realizado de forma centralizada pela União e que utilizem tabela remuneratória única. Esses dispositivos indicam um risco de termos um “carreirão” no serviço público brasileiro, controlado por regras estabelecidas no âmbito federal. Onde estaria a eficiência disso?

 

E mais, a contratação de servidores públicos pode ser feita via CLT (conforme recente decisão do STF), deixando o funcionalismo público sem estabilidade, o que abre brechas para a perigosa prática de apadrinhamento político que leva o serviço público à ineficiência e até imoralidade. Será que um servidor sem estabilidade, e com risco de ser removido, punido ou demitido, aceitaria fiscalizar ou denunciar irregularidades cometidas por seu chefe ou autoridade pública, como vimos em passado recente com os casos de joias apreendidas no aeroporto de Guarulhos, e de então ministro do meio ambiente denunciado por contrabando de madeira? Ainda mais considerando que seu chefe pode ser uma pessoa de fora da carreira, ocupante de cargo em comissão? Como ficará o combate à corrupção? Não podemos admitir um retrocesso que coloque interesses particulares de governantes de plantão acima do interesse do Estado e da sociedade.

 

Subordinação da administração pública à lógica mercantilista

 

A proposta de reforma administrativa foi apresentada em um pacote que inclui, além da PEC 38/2025, outros dois projetos de lei. Um desses projetos, institui a Lei de Responsabilidade por Resultados da Administração Pública brasileira, que praticamente equipara o Estado a uma empresa ao preverá criação de indicadores para mensurar o desempenho de órgão ou entidade pública ou de política pública, e a sua submissão ao atingimento de metas de resultado.

 

Há previsão ainda para a realização de avaliação periódica de desempenho de servidores, que, na prática, pode levar ao estabelecimentos de metas inviáveis, o que resultaria até em demissão de servidores, conforme prevê a Constituição (art. 41 §1º, III).

 

O resultado da avaliação de desempenho poderia gerar premiação por meio de bônus de resultado, que a PEC 38/2025 pretende incluir no texto constitucional exclusivamente para os servidores em atividade, ferindo frontalmente o direito à paridade devida àqueles servidores públicos que durante toda a sua vida laboral pagaram contribuição social sobre o salário bruto (e continuam pagando mesmo depois de aposentados), e que ficarão excluídos do recebimento desse bônus.

 

A chamada “eficiência” não está demonstrada e esse discurso tenta imprimir no serviço público a lógica de mercado, esquecendo-se das funções sociais do Estado, da garantia de direitos sociais universais previstas na Constituição Federal, e da condição de profunda desigualdade social e regional existentes no Brasil.

 

Risco de barbárie e aprofundamento da desigualdade social

 

Os autores da PEC 38/2025 não apresentaram dados ou estudos que comprovem a alegada economia de recursos públicos, caso essa PEC venha a ser aprovada.

 

É evidente que a supressão de cargos e carreiras e o desmonte de vários serviços públicos irá fazer desaparecer uma série de despesas públicas, porém, a que custo? Quais as consequências disso para a imensa maioria da população, que não tem acesso a serviços de saúde, educação, previdência e assistência fora do setor público? Qual seria o custo do caos, da barbárie que deixará a maioria do povo brasileiro completamente desassistida, e da vergonhosa afronta aos princípios fundamentais previstos na Constituição Federal, como a dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III), e o compromisso com a erradicação da pobreza, da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais (Art. 3º, III)?

 

E mais: o que será feito com a “economia” decorrente da supressão de carreiras, cargos, serviços públicos, enfim, do desmonte da estrutura do Estado? O objetivo é fazer sobrar mais dinheiro ainda para os gastos com o Sistema da Dívida. Assim, a sociedade brasileira não terá benefício algum com essa PEC 38/2025, apenas o setor financeiro e as grandes corporações que avançam sobre a estrutura do Estado para lucrar.

 

Combate a privilégios e distorções existentes no serviço público

 

O texto da PEC 38/2025 chega a corrigir algumas distorções existentes na cúpula do poder judiciário, a exemplo da vedação de aposentadoria compulsória a magistrados como sanção pela prática de infração disciplinar e a multiplicidade de férias. No entanto, é preciso deixar claro que essas distorções estão presentes apenas em um nicho específico e precisam de fato ser corrigidas, mas não constituem, de forma alguma, a regra do setor público em geral, que a PEC 38/2025 atinge em cheio e coloca em risco de desmonte.

 

O Sistema da Dívida é o maior responsável pelo desmonte do Estado e precisa ser enfrentado

 

O desmonte do Estado e a tentativa de enfraquecer as instituições públicas para privatizá-las é o principal objetivo da PEC 38/2025 e tem sido uma ameaça presente em vários projetos. Atualmente, está em andamento no Senado Federal o Projeto de Resolução do Senado (PRS) nº 8/2025, que, a pretexto de limitar o estoque da dívida pública, privilegia o mecanismo da Bolsa Banqueiro e, ainda por cima, prevê que, caso o estoque dessa dívida atinja determinado limite (o que pode ocorrer rapidamente devido às astronômicas taxas de juros estabelecidas pelo Banco Central), ficarão vedados concursos públicos, reajustes salariais, avanços em planos de carreira e diversos outros direitos básicos do funcionalismo público, conforme consta textualmente do referido projeto: Art. 2º No caso da inobservância de qualquer um dos limites definidos no art. 1º, serão adotadas as seguintes disposições: (…) IV – aplicam-se imediatamente as vedações previstas nos incisos I a X do art. 167-A da Constituição Federal”. Texto constante no Substitutivo mais recente, de 30/9/2025. Essa limitação submete os interesses da sociedade e as necessidades da estrutura do Estado aos privilégios do Sistema da Dívida e já representa uma parte do que a proposta de reforma administrativa pretende alcançar.

 

É urgente que toda a sociedade brasileira se una para impedir esse desmonte, se mobilize e lute em defesa da manutenção e melhoria dos serviços públicos e da garantia de direitos sociais. Por isso, a ACD preparou ferramentas para o envio de mensagens a parlamentares e demais autoridades, tanto contra a PEC 38/2025, como contra o PRS 8/2025. Convidamos todas as pessoas a acessar essas ferramentas na página da Auditoria Cidadã da Dívida, e enviar mensagem a todas as autoridades para repudiar essa tentativa de retirar direitos da sociedade brasileira e a demolição do Estado brasileiro.

 

Adicionalmente, será preciso participar das mobilizações públicas, que deram impressionante resultado recentemente, quando a chamada PEC da Blindagem foi derrotada por unanimidade no Senado. Novamente, a partir da grande mobilização que culminou na realização da grande Marcha contra a PEC 38/2025 realizada no dia 29 de outubro em Brasília, 16 (dezesseis) parlamentares já retiraram suas assinaturas de apoio a essa proposta. O respeito aos direitos do povo só será conquistado mediante luta consciente e mobilização popular, como sempre foi ao longo da história. Faça a sua parte! Contamos com você.

 

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz da CNBB (CBJP). Escreve mensalmente para o Extra Classe.

 

Artigo publicado originalmente em Extra Classe, no dia 6 de novembro de 2025. 



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