
“Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz” (Epicuro).
01. No dia 16 de agosto, no Brasil, não sei por iniciativa de quem, se comemora o dia de quem se dedica à filosofia, seja filósofa ou filósofo, de fato ou por nomenclatura. Por que, em vez disso, não falar em Dia do Pensamento, pois pensar, que tem sua origem na práxis, é a mais desenvolvida atividade humana. E o que de mais ontológico constitui o filosofar nunca foi ou será uma exclusividade de quem formalmente passou pelo Curso de Filosofia, homem ou mulher. Jesus de Nazaré, por exemplo, está entre aquelas e aqueles que Edgar Morin chama de “meus filósofos”.
02. Onde há pensamento, no sentido ontológico do conceito, há filosofia. Mas garantia de pensamento não há em quem formal e institucionalmente se reivindica filósofa ou filósofo. Grandes referências da filosofia caminharam por fora da institucionalização do pensamento. Nada mais antifilosófico do que uma filosofia institucional. Pode-se institucionalizar o pensamento ou chamar a isso de pensar? O que mais cabe a quem pensa é pensar contra o pensamento. Não pensa quem não pensa por si. Não é tarefa fácil discernir, no ato de pensar, se de fato pensamos ou estão pensando por nós.
03. Filosofia é recusa. É converter resposta feita em pergunta que desconcerta. O mundo do ser social é habitado e assaltado por muitas respostas. Em muitos casos, respostas estúpidas, porque carentes de perguntas. É preciso recuperar a filosofia perguntante da criança. Uma vez, de forma descabida, perguntei à Maressa,nossa sobrinha-neta então com três anos, o que é o tempo? Ao que de forma desconcertante respondeu: “eu não sei. Você sabe?”. Foi efusivamente aplaudida por Santo Agostinho. A bem ou maldizer, quando diminui a atitude de duvidar, quando pouco se pergunta, aumenta o coeficiente de respostas estúpidas. E faz má filosofia quem subestima o poder da estupidez.
04. Filosofia, no sentido verdadeiro, amplo e necessário, não é apanágio de formação especializada e institucionalmente regulada. Em sentido gramsciano, todo ser humano é filósofo. Há e se produz filosofia por fora da regulação e da ordem. Uma filosofia regulada seria uma contraditio in verbis. Filosofia é a democracia do pensamento. Habermas, ao falar sobre filosofia e democracia, indica relação de origem e dependência entre ambas. Uma depende da outra. A filosofia, assim, pode ser tomada por um tipo de medida epistêmica e política da densidade da democracia. Para Kant, impedir o progresso do pensamento, essa determinação original nossa, é um crime contra a natureza humana.
05. Quem se dedica à filosofia em seu sentido socrático, livre e não acadêmico, imune às medidas do produtivismo vazio, doente e adoecedor, que hoje nas universidades alarga o espaço de um tipo refinado de delinquência (a delinquência acadêmica, ver Tragtenberg), não se submete jamais à lattescracia, síndrome que desmerece e avilta o nome do grande físico (e filósofo) brasileiro César Lattes. Democrata e inimigo da ditadura, Lattes chegou a batizar seu cachorro com o nome de Costa e Silva, o segundo presidente do regime de exceção. Em minha condição de teólogo heterodoxo e sem cátedra, considero esta a única “injustiça” (canina) cometida por esse grande e impenitente físico, injustiçado e tão pouco conhecido, sobretudo no mundo do saber acadêmico.
06. Vem de Nietzsche uma pertinente e instigante definição de quem se dedica à filosofia: um tipo de médico da civilização, alguém que de forma lídima, livre e epicurista, indica e vive a filosofia como um caminho para a saúde da alma. Marx, que não era formado em filosofia e nunca foi docente no sentido acadêmico, escreveu seu trabalho de conclusão de curso (o TCC de hoje) sob genial inspiração do filósofo materialista Epicuro. Um TCC, se possível fosse comparar, que deixaria em vergonha parte de teses doutorais, pomposamente defendidas em nossas academias.
07. A quem pensa a filosofia de forma altaneira e livre dos fechados aposentos dos especialistas, muitos acometidos de corcundas (para citar Nietzsche, que escreve que todo especialista tem a sua), sempre abre e jamais fecha ou dificulta o caminho do pensamento, sobretudo em tempos de apologia da estupidez e de razão carente de pensamento. Permanece oportuno o desafio proposto por Heidegger de que à filosofia (como sabedoria) cabe ser um tipo de guarda da ratio (razão). Heideggeriano não sou, mas há verdade nessa indicação do autor de Ser e Tempo. E para muito espanto, ainda afirmou: a ciência não pensa.
*Professor de Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo heterodoxo e sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA-Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus, AM, agosto de 2025.
Imagem: Rochak Shukla no Freepik
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