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  28/02/2025 - por José Alcimar de Oliveira





 

 

José Alcimar de Oliveira*

 

“Eu vim lançar fogo (heraclítico-socrático) sobre a terra,
 e como gostaria que já estivesse aceso!”
Jesus, o Nazareno

 

Neste fevereiro de 2025 o Brasil de quem não se rende ao arbítrio, ao poder do atraso e não transige com a ordem do capital assassino e seus perversos efeitos, no campo e na cidade, deve fazer memória a duas vidas que dignificam a luta coletiva da classe trabalhadora por um país de todas e de todos: Elizabeth Altino Teixeira e Dorothy Mae Stang. Duas mulheres irredentas, duas vidas distintas, mas entrelaçadas por uma causa comum: a luta em defesa da vida “dos esfarrapados do mundo”, a quem Paulo Freire dedica a sua Pedagogia do Oprimido. O mundo do capital e da morte produz gente pequena, coisificada pela posse. Gente grande mesmo, como Elizabeth Teixeira e Dorothy Stang, feita da fibra ontológica do ser, só pode brotar da terra que é vida e do trabalho que afirma a vida.

 

Na luta em defesa da vida na terra contra a morte promovida pelo mundo do latifúndio, Elizabeth Teixeira e Dorothy Stang, uma brasileira e outra estadunidense, assumiram como pátria comum a arena da afirmação dos direitos fundamentais a partir da classe que vive do trabalho, sobretudo do direito à terra para quem nela trabalha. A terra, afinal, como diz o canto camponês, “é de quem trabalha”.  Penso que o belo e nunca possível encontro entre Elizabeth Teixeira e Dorothy Stang seria uma versão laica (entre o Nordeste e o Norte do Brasil) e não menos sagrada do encontro samaritano entre Maria e Isabel nas terras palestinas. Algo de que muito me orgulho até hoje foi ter tirado um retrato (retrato mesmo, nada de sélfi) ao lado de Elizabeth Teixeira, em 23 de agosto de 1985, quando ela veio a Manaus para o lançamento do documentário “Cabra marcado para morrer”, de Eduardo Coutinho. Esse documentário, que imortalizou Elizabeth Teixeira, tem para mim a força de um evangelho laico. E o memorável Coutinho, que partiu da imanência para a transcendência em 02 de fevereiro de 2014, é para mim o maior documentarista do cinema brasileiro.

 

Elizabeth Altino Teixeira, paraibana de Sapé, de origem pobre, mais vítima das cercas do capital do que das secas, mãe de onze filhas e filhos, tornou-se jovem viúva de João Pedro Teixeira, assassinado em 1962 numa covarde emboscada planejada pelos coronéis do latifúndio nordestino. João Pedro estava marcado para morrer, numa terra em que o mundo do grande capital modula a existência pelo ritmo da morte e torna a vida seca e permanentemente severina, como bem descreve João Cabral de Melo Neto no Auto de Natal Pernambucano, subtítulo de seu clássico Morte e vida severina: lá na terra onde impera o reino da morte. “(...) morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (...)”. Elizabeth Teixeira, embora marcada para morrer, segue viva e prestes a completar 100 anos em 13 de fevereiro de 2025. Seguramente é a maior liderança camponesa do Brasil.

 

Irmã Dorothy Mae Stang, estadunidense, nascida em 07 de junho de 1931, foi assassinada aos 73 anos a mando de latifundiários no dia 12 de fevereiro de 2005, em Anapu, Pará. Um dia é o intervalo a separar as datas da morte de Dorothy Stang e do nascimento de Elizabeth Teixeira, em 13 de fevereiro de 1925. Irmã Dorothy, como era conhecida, agora nos interpela do alto da transcendência reservada a quem fez da imanência tempo-espaço de defesa e de afirmação da vida da classe trabalhadora, numa luta desigual, contra toda esperança, mas no permanente enfrentamento de uma estrutura fundiária demarcada pela injustiça, manchada pelo sangue dos espoliados da terra e submetidos à ordem da brutalidade e da violência. O sangue de João Pedro, companheiro de Elizabeth Teixeira, e assassinado em 1962, no Brasil pré-golpe empresarial-militar de 1964, e o sangue de Irmã Dorothy Stang, assassinada em 2005, no Brasil pós-golpe, continuam a respingar sobre o Estado brasileiro nesse 2025. E a gritar por justiça.

 

 

Sob a ordem e os interesses do capital o Estado tende a se converter na mais poderosa organização criminosa. Se existem organizações criminosas no Estado, é sinal seguro de que há Estado nas organizações criminosas. Há muitos que temem a necessária e nunca materializada ditadura do proletariado, quando a pior e mais cruel ditadura, realmente existente, é a da autocracia burguesa, que sempre controlou o Estado brasileiro. Irmã Dorothy e tantas e tantos que tombaram na luta contra esse poder assassino, antes e depois de seu martírio, testemunharam com letras de sangue derramado sobre a terra o que é viver e sobreviver sob a necrocracia do sistema do capital. Dentre tantos depoimentos sobre a vida da Irmã Dorothy Stang, alguém assim a descreveu: “Suave e firme, dedicada como poucos, apaixonada pelo Brasil e pela gente da Amazônia, deixou sua terra, os Estados Unidos, e veio para a nossa. Morava em casa simples, usava sandálias de dedo como o povo pobre daquela região. Falava um português da roça com sotaque americano. Mas era só o sotaque. Pois tinha deixado a ideologia do norte e tinha assumido o compromisso com a gente de nosso sofrido continente”.

 

No dia 16 de fevereiro de 2005, a Prelazia do Xingu, juntamente com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), divulgam contundente Nota Oficial contra a violência do latifúndio, com sua prática de assassínios frios, planejados, como o que ceifou a vida da Irmã Dorothy Stang: “Sua morte – conforme a Nota – denuncia, diante do Brasil e do mundo, a absurda estrutura rural de concentração da terra em grandes propriedades, ao lado de milhões de famílias que, teimosamente, buscam, sem consegui-lo, um pequeno pedaço  de chão que lhes sirva de abrigo e que providencie o seu sustento”. É preciso dizer, e repetir quantas vezes forem necessárias, que criminoso não é ocupar terras improdutivas e concentradas nas mãos de poucos e gananciosos proprietários. Ocupar latifúndio e terra improdutiva é imperativo da justiça. Terra é vida. Lutar pelo direito à terra não é crime.  Criminoso é o latifúndio, que expropria a terra de quem trabalha e tem direito de viver.

 

Elizabeth Teixeira, marcada para morrer e ainda viva, do alto de seus 100 anos de luta, e Dorothy Stang, assassinada aos 73, são duas mulheres que dignificam a luta coletiva da classe trabalhadora, no Brasil e no mundo, pela terra da igualdade radical e da libertação dos grilhões capitalistas que acorrentam mulheres e homens, proletárias e proletários, do campo e da cidade. Se há luta, há esperança. Elizabeth Teixeira e Dorothy Stang, vocês ainda estão aqui! Elizabeth Teixeira e Dorothy Stang, Presentes!

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia e mestre em Educação pela mesma Universidade. É teólogo heterodoxo e sem cátedra, 2º vice-presidente da ADUA (biênio 2024-2026) e filho altivo do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE).

 

Fotos: Mídia Ninja/Reprodução e Carlos Silva/Reprodução



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