Manifestações pediam anistia durante período da abertura política
Em 28 de agosto de 1979, a lei n° 6.683/79, que ficou conhecida como a Lei da Anistia, foi sancionada pelo então presidente João Batista Figueiredo. Sua aprovação foi o resultado de ampla mobilização popular e da ação de organizações como o Movimento Feminino pela Anistia, o Comitê Brasileiro pela Anistia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que clamavam por uma “anistia geral, ampla e irrestrita”. Essa lei representou um importante passo no processo de redemocratização do país, tendo permitido o retorno de pelo menos 5.000 exilados políticos ao país, a libertação de presos políticos e a reintegração ao serviço público de pessoas que haviam sido cassadas. O país comemorava esperançoso “a volta do irmão do Henfil” e, junto com ele, de importantes lideranças políticas, intelectuais, artistas, ativistas e estudantes. No entanto, essa lei que tanta esperança trouxe ao povo brasileiro também veio carregada de frustrações. Primeiramente porque excluía os que tivessem sido condenados de forma definitiva por atos de “terrorismo”, conferindo à lei um caráter excludente e restritivo. E, em segundo lugar, porque estendia a anistia aos militares que cometeram abusos em nome do Estado durante a ditadura. Isso foi um mecanismo que garantiu que todas as atrocidades perpetradas pelos agentes do Estado, todas as torturas, assassinatos, estupros, genocídios e todas as abomináveis violações cometidas durante o período contariam com a certeza da impunidade! A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos manifestou-se, em dezembro de 2010, condenando a Lei de Anistia brasileira, que impedia o dever internacional do Estado de investigar e sancionar as graves violações de Direitos Humanos.
A não punição ou não responsabilização dos agentes da repressão pelos crimes cometidos no país contrasta com a forma como a Justiça de Transição foi promovida em países vizinhos que sofreram agruras semelhantes: a Argentina pode ser tomada como um exemplo, tendo punido mais de 200 militares e civis pelo envolvimento em prisões, torturas, desaparecimentos e mortes durante a ditadura ocorrida entre 1976 e 1983, e condenado à prisão perpétua o general Jorge Rafael Videla, presidente do país entre 1976 e 1981. Mesmo sem a celeridade e o dinamismo da Justiça de Transição argentina, países como Uruguai e Chile também colocaram os algozes da ditadura no banco dos réus. Voltando ao caso (ou caos) brasileiro, somente no ano de 1995, já no governo FHC, com a aprovação do Decreto 9.140/95 (a chamada Lei dos Mortos e Desaparecidos), o Estado brasileiro passa a reconhecer sua responsabilidade sobre as violações dos Direitos Humanos ocorridas entre 1961 e 1988, reconhecendo como mortas as pessoas desaparecidas após detenção pelos mecanismos de repressão. Este decreto previa ainda a criação de uma Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. No entanto, embora consideremos que o reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre as violações perpetradas durante a ditadura seja um importante avanço, essa lei não buscava a averiguação das circunstâncias destas violações e muito menos responsabilizar os agentes da repressão que praticaram tais atos. É a permanência da lógica do “perdão e do esquecimento”. A Lei 10.875/2004 ampliava os critérios para a identificação dos desaparecidos políticos, incluindo mortos em manifestações políticas e sociais.
8 de janeiro de 2024 foi marcado por uma tentativa de golpe
Todavia, a principal iniciativa brasileira na direção de uma efetiva Justiça de Transição talvez tenha sido a criação da Comissão Nacional da Verdade, através da Lei 12.528/2011, tendo como objetivo examinar e esclarecer as graves violações de Direitos Humanos praticadas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, buscando consolidar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. A CNV publicou o relatório com os resultados dos trabalhos desenvolvidos em dezembro de 2014. Mesmo que consideremos que a criação da CNV tenha sido um primeiro passo em direção ao reconhecimento efetivo das violações cometidas e que as recomendações do relatório devam ser efetivadas, outros desdobramentos são necessários (como a criação da Comissão da Verdade para os Povos Indígenas), e a necessidade de reconhecer os limites desta lei, que teve que se amoldar à recusa da revisão da Lei da Anistia. Ou seja, foi uma Comissão da Verdade sem que fosse possível a responsabilização dos agentes da repressão pelos crimes do passado, deixando um gosto amargo na boca e uma sensação de que ela poderia ter ido além.
Embora, em sua introdução, o relatório da CNV destaque o “firme desejo de que os fatos descritos nunca mais venham a se repetir”, ele não poderia imaginar a rápida ascensão da extrema direita no país e de uma visão negacionista, autoritária e saudosista da ditadura militar. Foram anos de retrocesso e de autoritarismo, provocando um esvaziamento do debate sobre os Direitos Humanos nas instâncias do Estado. E, no dia 8 de janeiro de 2023, acordamos com movimentações antidemocráticas com intuitos golpistas que colocaram em xeque a democracia do país. Não é possível que toleremos novos ataques à democracia! Não à anistia aos golpistas de ontem e de hoje!!!
*César é professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (Ufam)
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