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  29/08/2024 - por José Alcimar de Oliveira





 

 

01. Helder Camara: Quando a vida se faz Dom é o título de uma bela, rica e heterodoxa biografia do mais vermelho e execrado bispo da história da Igreja no Brasil: Dom Helder Pessoa Camara.  Foi escrita pelas mãos do bem, pela mente lúcida e pela visão da história longa de Eduardo Hoornaert, jovem historiador e teólogo nascido belga, à beira de completar 94 anos neste 2024 e que há 66 anos se fez brasileiro e cidadão do mundo a partir do Nordeste irredento, mais agredido pelas cercas do capital do que pela seca.

 

02. Hoornaert é um pensador referencial para a história da Igreja na Amazônia e para a história das origens do cristianismo. Do belo encontro tecido de bons afetos nazarenos e spinozistas entre o historiador (Hoornaert) e o bispo (Helder) nasceu o relato-testemunho em forma de biografia dessa figura a um só tempo santa para o povo dos pobres e satanizada pela ditadura empresarial-militar brasileira, instalada com o Golpe de 1964. O mais subversivo dos bispos mal cabia numa surrada batina branca, destituída de poder e ostentação.

 

03. A maior luta de Dom Helder não foi contra o poder do autoritarismo (eclesial e militar), mas contra o próprio Dom Helder. Nele, em sua figura exteriormente frágil e interiormente vulcânica, a contradição se fez fértil em vida, pensamento e ação, o que se manifesta na travessia incomum de sua adesão inicial ao integralismo de filiação nazifascista para a resistência abraâmica ao poder reacionário. Fez da direita para a esquerda a rota que leva à justiça como fundamento da paz.

 

04. São poucas no mundo as existências, como a de Dom Helder, que fizeram de cada situação limitante um desafio para crescer e humanizar-se como pessoa por meio da construção de um projeto comum do bem conviver. No sofrimento de uma vida sofre a humanidade inteira. Vem dele o belo projeto de formação das Minorias Abraâmicas, cujo roteiro encontra-se no pequeno e ousado livro O deserto é fértil. A gênese da missão de Dom Helder está mais na Palestina do Movimento de Jesus do que no Vaticano. Silenciado no Brasil, falou ao mundo a partir de sua base itinerante em Olinda e Recife. 

 

05. Neste 27 de agosto de 2024 completam-se 25 anos da partida de Dom Helder Camara do tempo e espaço da imanência histórica, que ele soube viver com o mais elevado espírito de transcendência, para o lugar da eternidade como coroação de uma vida que nunca se deixou limitar pelas forças reacionárias do mal, que envenenam o espirito dos pobres com a crença de que a justiça do além pode compensar as misérias do aquém. A defesa da vida se inicia onde se vive ou, por força das desigualdades sociais do mundo capitalista, onde se é impedido de viver. Para Dom Helder é falso, ideológico e anticristão o discurso que tenta justificar para os pobres a negação da vida antes da morte com a promessa de vida após a morte.

 

06. Dom Helder foi antes de tudo um místico, não um místico que se aparta do mundo como ele é e se refugia numa espiritualidade imune às contradições da imanência histórica. Sua mística se alimentava da fé e da política. O cristianismo para ele, como no tempo dos primeiros cristãos, era Caminho, Movimento, Missão, Passos, o que é muito diferente de religião, sempre mais afeita ao imobilismo dos Paços e ao bem-estar dos ritos vazios de uma vivência aburguesada da fé. Helder não morava em palácio episcopal e fez de sua residência uma casa de portas abertas, com a sala ligada à rua, receptiva ao mundo dos pobres e em luta contra a pobreza.  

 

07. Hoornaert, em sua biografia de Dom Helder, encontra no filósofo Baruch Spinoza uma possível e instigante resposta aos questionamentos sobre a força interior, intuitiva, mística, que movia pensamento e vida desse profeta na periferia do capitalismo: trata-se do “amor intellectualis Dei”, “não de uma intuição despojada de razão, mas de um amor a Deus que passa pelo crivo da inteligência e se baseia na razão. O religioso autêntico cultiva a inteligência, não renuncia a ela”. É razoável dizer que o místico Helder complementa Spinoza ao incluir Mundus (dos pobres) na célebre equação Deus sive Natura. 

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA-Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru-AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana-CE). Em Manaus, AM, 27 de agosto de 2024, aos 25 anos da partida de Dom Helder Camara.



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