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  26/07/2024 - por Maria Lúcia Fattorelli





 

 

 

Nosso planeta sempre esteve em mutação, desde a sua origem, pois é um ser vivo, porém, em alguns períodos essas mudanças ficam mais exacerbadas. É o que temos assistido nas últimas décadas: uma aceleração de inúmeras mudanças, em todos os aspectos, passando pela questão ambiental, comportamental e social, política, econômica, financeira, e, acima de tudo, ética.

 

O desafio para compreender e analisar essa conjuntura é imenso, por isso se busca analisar cada aspecto separadamente, sem, contudo, perder a visão geral do todo, pois tudo está intrinsecamente relacionado.

 

Nesse texto vou procurar analisar a grande mudança na área da economia e finanças. Essa área tem sido marcada, mais fortemente desde a década de 1970, pelo processo que se denomina Financeirização Mundial, coincidindo – não por acaso – com a exacerbação da concentração de renda nas mãos de alguns setores privilegiados e aumento da desigualdade social e dos danos ambientais.

 

O fenômeno da Financeirização não surge por acaso, mas é fruto de um modelo impulsionado por organismos internacionais, como FMI e Banco Mundial, que passaram a determinar alterações legais para permitir liberdade para a movimentação de capitais e mercadorias mundo afora, pregando grandes vantagens da denominada “globalização”, que na prática pouco entregaram, como nos ensina o Prof. Dr. Miguel Bruno em seu brilhante artigo Financeirização, neoliberalismo e captura do Estado: uma tríade antidesenvolvimento do Brasil.

 

O fetiche da “globalização” era de fato irresistível, pois as fronteiras entre os diversos países seriam abertas, concretizando-se o antigo sonho de comunhão universal, porém, somente para fins comerciais e financeiros. Evidentemente, essa liberdade não se estenderia às pessoas, como vimos em inúmeras e dramáticas situações de rejeição à imigração. Que globalização é essa?

 

As alterações legais que avançaram em todo o mundo nos anos 90 levaram a uma desregulamentação de normas, justamente para facilitar o trânsito de capitais e mercadorias, abrindo espaço para o avanço na criação de produtos financeiros e atuação de mecanismos que buscam a valorização do capital por ele mesmo, de forma artificial e sem a devida correspondência em geração de produto, trabalho e renda. Dessa forma, o fenômeno da Financeirização acaba influenciando não apenas a esfera pública e estatal em todo o planeta, o funcionamento dos bancos centrais, mas afeta também a economia real, já que muitas empresas optam por ganhos financeiros mais fáceis e lucrativos que o obtido em sua atividade operacional.

 

A Financeirização aprofundou o neoliberalismo, na medida em que os ataques essencialmente ideológicos contra o Estado de bem-estar social, às regras do sistema monetário internacional estabelecidas pelo acordo de Breton Woods e às políticas keynesianas pró-crescimento e geração de emprego eram convenientes à defesa da desregulamentação almejada, consolidando a implementação de modelos econômicos dependentes da alta finança internacional com seus interesses rentistas e operações especulativas:

 

Esta é a origem dos processos de financeirização que se espalhou pelo mundo, graças ao advento das novas tecnologias da comunicação e da informação que permitiu a formação de mercados globais sob tutela dos interesses geopolíticos e geoeconômicos dos EUA. Com praticamente todos os canais financeiros internacionais controlados por Washington, a economia desse país se torna, na década de 1990, a mais financeirizada do mundo (Boyer, 2000). Fato que lhes permitiu até a atualidade subordinar e controlar os mercados bancário-financeiros tanto dos países europeus quanto os da América Latina e de demais regiões do mundo.

 

A captura dos Estados nacionais passou a ficar cada vez mais evidente, submetidos a esse modelo econômico que privilegia cada vez mais o grande capital rentista com liberdade, desonerações fiscais e ganhos certos e fáceis.

 

Em alguns países como o Brasil, que abriu indiscriminadamente a sua economia para produtos internacionais na década de 90, levando a indústria nacional a perdas profundas que não se recuperaram até os dias atuais, o ganho financeiro passou a vir principalmente pela remuneração de títulos públicos, pois o período coincide com aplicação de política monetária ultra ortodoxa, com juros elevadíssimos, sob a desculpa de controlar inflação que, na realidade, tinha origem em aumentos de preços que não se reduzem quando os juros aumentam.

 

A fim de garantir recursos para essa elevada remuneração rentista, medidas de ajuste fiscal ganham cada vez maior importância, visando conter e até reduzir os investimentos sociais para que sobrem cada vez mais recursos para a chamada dívida pública: inicialmente impostas pelo FMI e Banco Mundial, as medidas que impõem limites para gastos sociais passaram a ser incorporadas em normas legais, chegando a ocupar a Constituição Federal com a Emenda 95 aprovada em 2016, quando foi aprovada a submissão a um teto de gastos que perduraria por 20 anos! Evidentemente tal medida absurda não sobreviveu por muito tempo, no entanto, foi substituída pelo arcabouço fiscal (Lei Complementar 200/2023), que mantém o teto de gastos sociais com flexibilização mínima, de apenas até 2,5% ao ano e ainda sujeita a arrojadas metas de superávit primário, enquanto não impõe limite ou controle algum ao gasto financeiro com a dívida pública.

 

O chamado “resultado primário” é a diferença entre as “receitas primárias” (em sua maioria representada tributos) e as “despesas primárias”, que representam os investimentos sociais, ou seja, não incluem o gasto com a dívida pública. Desta forma, para cumprir a meta de “resultado primário”, é preciso controlar e cortar investimentos sociais, porém, não os gastos com a dívida pública, que desta forma podem continuar sem controle.

 

Um dos mecanismos geradores de dívida pública no Brasil está relacionado às operações de open marketing, também mencionadas pelo Prof. Dr. Miguel Bruno em seu texto antes mencionado, “envolvendo compra e venda de títulos da dívida pública”, ressaltando que embora “possam ser funcionais à gestão da liquidez, sua prática com taxas exorbitantes de juros reais deslocam a função da política monetária para outro campo. A convertem num instrumento tácito e eficaz para a drenagem de recursos orçamentários realimentando o endividamento público improdutivo às expensas dos demais setores da economia, especialmente, daqueles que dependem da produção e, portanto, de imobilizar capital, incorrendo em perda de liquidez e maiores riscos.”

 

De fato, no Brasil, essas operações de open marketing esterilizam grande volume de moeda, tendo em vista que as chamadas “operações compromissadas” atingiram o patamar de R$ 1,6 trilhão em agosto/2020, por exemplo, como amplamente noticiado, impedindo a circulação saudável do dinheiro na economia, gerando uma escassez que provoca, ao mesmo tempo, elevação das taxas de juros de mercado, aumento do gasto com juros da dívida e elevação de seu estoque.

 

Esse fato evidencia o avanço do fenômeno da Financeirização sobre as finanças públicas, submetendo o orçamento federal à priorização da remuneração rentista, em detrimento do atendimento às necessidades sociais urgentes da população e o nosso direito ao desenvolvimento socioeconômico.

 

Cabe ainda ressaltar os aspectos de “financeirização usurária” e o avanço da financeirização para as famílias no Brasil, trazidos pelo Prof. Dr. Miguel Bruno:

 

Em estudos recentes, Bruno (2021) e Bruno & Caffé (2017) mostraram que a modalidade de financeirização na economia brasileira difere do padrão observado em economias desenvolvidas como a dos EUA. Como no Brasil as taxas reais de juros permanecem em níveis inusitados quando comparadas à média internacional, a renda de juros reais capitalizada (capitalização composta) converte os títulos e fundos de renda fixa no paraíso do rentismo, freando a expansão dos títulos de renda variável, essência do mercado de ações. Por essa razão, pode-se classificar esse tipo de financeirização como financeirização usurária, para diferenciá-la do tipo observado nos países em que vigoram baixas taxas de juros reais, especialmente, aquelas que remuneram os títulos da dívida pública.

 

Na primeira fase da financeirização da economia brasileira, nos anos 1980, a acumulação rentista-financeira baseava-se nos ganhos inflacionários obtidos na chamada “ciranda financeira”, expressão do processo especulativo de curto prazo com os títulos públicos. Mas, com a adesão aos mercados financeiros globais nos anos 1990, a financeirização brasileira atinge um novo patamar. Além de expandir o endividamento público interno, promoveu de forma acelerada o endividamento privado de famílias e de empresas não-financeiras devido às elevadíssimas taxas de juros reais, de tal modo que cerca de 76,6 % das famílias encontram-se endividadas e 30% inadimplentes.

 

O processo de Financeirização vem se agravando no Brasil, tanto por meio da priorização de destinação orçamentária para atividades improdutivas como a remuneração do Sistema da Dívida (que no Brasil não possui contrapartida em investimentos, como já declarou o Tribunal de Contas da União), como por meio da aplicação de modelo que garante baixos salários e coloca a população em uma constante necessidade de recorrer a endividamento bancário. Adicionalmente, a Financeirização se agrava no país, diante da proliferação de produtos financeiros que avançam sobre o orçamento público, desviando recursos arrecadados antes mesmo que estes alcancem os cofres públicos, como o nocivo esquema da chamada Securitização de Créditos Públicos.

 

O Sistema da Dívida tem sido o instrumento preferido da Financeirização no Brasil. Para enfrentar esse cenário e corrigir o rumo, é necessário conscientizar a população, vítima de propaganda enganosa no sentido de que o país teria dívida porque estaria gastando demais com Previdência, Saúde e benefícios para o povo; que deveria cortar investimentos sociais para ser “responsável”, quando, na realidade, o endividamento público no Brasil tem funcionado como um sistema que se retroalimenta, absorvendo todas as receitas financeiras com a venda de títulos públicos apenas para pagar os próprios juros e amortizações dessa chamada dívida, e ainda abocanha boa parte de recursos advindos de outras fontes. Com mobilização social consciente será possível corrigir os rumos da economia, como vislumbra o Papa Francisco ao convocar a juventude mundial para o movimento da Economia de Francisco e Clara.

 

 

*Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.



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