O Projeto de Lei Complementar 12 (PLP 12), apresentado em 4 de março de 2024, recebeu o seguinte comentário por parte do presidente da República: “É um dia muito importante. Vocês acabaram de criar uma nova modalidade no mundo do trabalho. Foi parida uma criança nova no mundo do trabalho. As pessoas vão ter autonomia, mas, ao mesmo tempo, precisam do mínimo de garantia”.
Criado para regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos, ao contrário do que disse o presidente, ele, logo em seu artigo 3º, afirma: “O trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas […] será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo”. Ao assim proceder, o projeto aceita e legaliza a exigência essencial das plataformas, qual seja, que o trabalhador, uma vez considerado “autônomo”, se mantenha à margem da totalidade da legislação protetora do trabalho no Brasil.
Acolhe e consente que a regulamentação proposta seja para legalizar a desregulamentação, uma vez que forja a desaparição e faz evaporar a condição real de subordinação e de assalariamento, isto é, a efetividade real que molda o trabalho em plataformas, cuja concretude evidencia ao limite o reconhecimento inescapável da subordinação do trabalho.
É imperioso dizer: essa obliteração só pode ser concebida abstraindo-se a realidade efetiva das relações de trabalho existentes nas plataformas, cujas velocidade e intensidade são conduzidas por algoritmos e artefatos digitais invisíveis que controlam, comandam e impõem ritmos, tempos e movimentos do trabalho, de modo a tornar tudo nada claro e muito turvo. Arquitetura emoldurada pela era do neoliberalismo e da financeirização que começou impondo a terceirização, ampliou a informalidade, forjou o acinte da intermitência, até chegar à aberração da uberização. Tudo isso para acabar de vez com o assalariamento, engendrando a falácia do pretenso “proprietário de si mesmo” e obscurecendo a real proletarização.
Processualidade histórica cuidadosamente talhada e lapidada ao longo de décadas, cujas causalidades são visíveis: uma massa imensa de trabalhadores e trabalhadoras sem emprego e dispostos a aceitar qualquer labor para sobreviver, em uma era de explosão tecnológica que não para um minuto para descansar.
Basta olhar a celeridade da inteligência artificial, cujo ChatGPT4, por si só, tem potencial ilimitado de extinção de postos de trabalho. Impulsão tecnológica desmesurada que se intensificou depois da eclosão da crise recessiva e estrutural de 1973, inicialmente com a automação invadindo as atividades industriais e, logo na viragem do século, com o universo tecnológico-informacional-digital que redesenha profundamente a produção em sentido amplo (indústria, agroindústria e serviços), permitindo o advento e a expansão da Indústria 4.0 e das grandes plataformas digitais.
Trata-se de um movimento que ocorreu simultaneamente à privatização de amplos setores dos serviços públicos, com o estrito objetivo de gerar lucro e mais valor, na trilha imposta pela regressividade neoliberal. A Indústria 4.0 – com a finalidade basilar de automatizar, robotizar e expandir sem limites a “internet das coisas” – busca eliminar ao máximo o trabalho humano. Paralela e simultaneamente, as grandes plataformas digitais se apresentam como capazes de incluir essa enorme força de trabalho sobrante em suas múltiplas e distintas atividades, reescritas, ressignificadas e aviltadas.
Foi assim que, a partir de meados da década de 1990, quase sem serem percebidas, Amazon (depois Amazon Mechanical Turk), Uber e suas tantas ramificações, Deliveroo, Lyft, 99 etc. nasceram, cresceram e se agigantaram, tornando-se poderosas plataformas digitais que hoje (junto com Google, Facebook/Meta, Microsoft e Apple) encontram-se no topo do tabuleiro do capital.
Na sequência, Airbnb, Workana, Getninjas, Parafuzo, entre muitas outras, todas dispondo de força de trabalho abundante e desempregada, em meio a uma verdadeira explosão tecnológica, encontraram, aos poucos, os condicionantes necessários para se utilizar do golpe Frankenstein, que nem a magistral imaginação literária de Mary Shelley conseguiu vislumbrar: permitir que as grandes plataformas pudessem passar ao largo da legislação protetora do trabalho dos respectivos países onde se instalavam e driblá-la.
Na origem das grandes plataformas digitais, consultorias jurídicas corporativas foram buscadas e o resultado foi pouco a pouco sendo gestado: “inventou-se” uma categoria híbrida, para burlar a legislação protetora do trabalho. Era preciso mascarar, encobrir, obliterar a condição de assalariamento e subordinação, de modo a garantir a empulhação.
Para tanto, foi preciso forjar um novo léxico corporativo que estampasse o (in)discreto charme das grandes plataformas. A numerosa força de trabalho a ser incorporada foi singelamente renomeada: de trabalhadores(as), assalariados(as), empregados(as) converteram-se em “autônomos(as)”, “empreendedores(as)”, sucedâneos diretos e diletos do que as grandes corporações tradicionais denominaram, anos atrás, como “colaboradores(as)”. Que sorte teve Aurélio Buarque de Holanda por não vivenciar essa adulteração tão profunda do significado original das palavras.
E como as grandes corporações não brincam em serviço, as ações foram sempre muito estudadas e cuidadosamente calculadas: era melhor começar pelo Sul global, onde quase tudo vale e a burla é sempre mais fácil, uma vez que a predação teve quase sempre como suporte a história e o pesado legado da escravização. Nos países do Norte, porém, melhor seria seguir na trilha dos governos acentuadamente neoliberais, como Estados Unidos e Inglaterra, para que, aos poucos, as plataformas fossem esparramando seus tentáculos.
Se algumas delas começaram como pequenas engenhocas, cheias de ideias “luminosas”, logo se converteram em gigantes globais. Os fundadores da Uber, por exemplo, conceberam uma empresa na qual os custos em relação ao instrumental de trabalho seriam transferidos para trabalhadores, que deveriam comprar ou alugar o carro (posteriormente, com a ampliação das atividades da plataforma, também moto, bicicleta), celular, internet, bag etc. Desse modo, o “capitalismo de plataforma” deixou de se responsabilizar até mesmo pelo fornecimento do instrumental básico de trabalho, sem falar da isenção de tributação.
Pacote tão bem urdido que logo fez aflorar um gritante e aparente paradoxo: em plena era informacional-digital, com o desenvolvimento intenso das tecnologias de informação e comunicação (TIC), paralelamente se presenciava uma regressão monumental nas condições de trabalho, apresentada agora como exemplo de “modernidade”, ainda que, de fato, recriasse desumanas condições de trabalho, típicas da Revolução Industrial.
O outsourcing, por exemplo, vigente na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, pelo qual a classe trabalhadora laborava em casa, fora do espaço da fábrica, sem nenhum direito e sob condições de exploração ilimitados, atualmente se converteu no pomposo crowdsourcing, também desprovido de legislação protetora, adulterando a árdua história global do trabalho. O velho reaparece como novo, ressurgindo como “moderno”, sendo que a moderna proteção do trabalho é apresentada como “arcaica”.
Foi esse embuste que o PLP 12 abraçou ao parir “uma criança nova no mundo do trabalho”: sem férias, sem 13º salário, sem descanso semanal, sem jornada regulamentada, sem FGTS, sem reconhecer os direitos mínimos das mulheres que nem sequer podem engravidar etc. Estarrece (ou terá sido proposital?) o completo desconhecimento (ou desconsideração) do cenário existente em outras partes do mundo.
O cuidadoso e mais atualizado estudo sobre as decisões judiciais europeias acerca do vínculo empregatício que temos até o presente, de autoria de Christina Hiessl (publicado na íntegra no livro), oferece um amplo panorama do que vem ocorrendo no cenário europeu. Apesar das diferenciações existentes entre os diversos países da União Europeia, a Diretiva relativa à melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais, recentemente aprovada pelos 27 Estados-membros da região, reconhece a presunção do vínculo empregatício, ao contrário da proposição das plataformas digitais que procuram impor a condição de “autonomia”, para se isentar do cumprimento da legislação.
Além disso, a Diretiva propõe uma regulamentação detalhada e minuciosa da gestão algorítmica do trabalho, de modo a proteger empregados e empregadas em plataformas, em vários e decisivos pontos. Portanto, ao contrário de passar ao largo, como faz o PLP 12, a legislação que vem sendo criada na União Europeia tanto rechaça o pressuposto da “autonomia” quanto enfrenta o problema crucial da invisibilidade dos algoritmos, exigindo transparência das plataformas, bem como a necessidade imperiosa de seu controle, inclusive pelos trabalhadores e trabalhadoras que atuam no setor.
É por isso que o Brasil está na contramão e em rota de regressão quando comparado ao cenário europeu. E se esse PLP for aprovado, estará de fato legalizando e legitimando um retrocesso histórico enorme que “abrirá a porteira” para a demolição dos direitos do trabalho conquistados pelo conjunto da classe trabalhadora em incontáveis batalhas, travadas desde a época da vigência do trabalho escravizado no Brasil. Isso porque o PLP 12 dá os diamantes e o ouro para as grandes plataformas digitais e joga migalhas para os trabalhadores e as trabalhadoras.
Sabemos que a previdência é vital, necessária e urgente para os(as) uberizados(as), mas que deve ser efetiva e não efêmera, uma vez que, sem o reconhecimento da condição de assalariamento, não é possível garantir que as pessoas possam verdadeiramente contribuir para de fato terem direito a uma previdência pública. Algo similar ocorre com os sindicatos: para serem reconhecidos e efetivos, eles não podem ser resultado de uma criação da cúpula governamental, mas da consciência e da vontade de organização da classe trabalhadora.
É por isso que, muito aquém do que ocorre em outros países (vários deles com governos declaradamente neoliberais, vale recordar), o PLP 12 é sinônimo de derrota, que começa com motoristas de aplicativos e depois poderá chegar a entregadores e entregadoras, tendo grande potencial de generalização para outras categorias.
E a aceitação de que as plataformas são empresas de intermediação ou fornecedoras de tecnologia, como faz o PLP 12, se desfaz frente à indagação basal: quando se chama a 99 ou a Uber, estamos clamando por transporte privado ou queremos aprender tecnologia? A resposta, qualquer criança sabe.
Em suma: o PLP do governo sucumbiu à imposição das plataformas, que não aceitam negociar esse ponto crucial: o reconhecimento da subordinação e do assalariamento, com o consequente reconhecimento dos direitos do trabalho que toda a classe trabalhadora lutou séculos para conquistar.
A ideia de criação de uma “terceira categoria” escancara a possibilidade de adentrarmos na “lei da selva” do trabalho, uma vez que, para uma ampla e crescente gama de trabalhadores e trabalhadoras, especialmente nos serviços, privados e públicos, a legalização da condição de “autônomo”, em detrimento do reconhecimento do assalariamento, é a porta de entrada para a extinção da totalidade dos direitos do trabalho no Brasil.
É por isso e tantos outros pontos cruciais que se poderá ler neste livro, que o PLP 12, se aprovado, significará uma grande derrota para motoristas de aplicativos e também, em seus desdobramentos, para entregadores. E poderá ser responsável por um grande retrocesso para o conjunto da classe trabalhadora. Por isso, ele precisa ser derrotado e rejeitado se não quisermos ficar, mais uma vez, na contramão da história.
(*) Versão resumida da Nota de Apresentação do livro O Trabalho em Plataformas: Regulamentação ou Desregulamentação (vários autores), no prelo pela Boitempo, publicado com o apoio do Ministério Público do Trabalho (15ª. Região), que terá distribuição gratuita. Publicado originalmente em A Terra é Redonda, 22.06.2024.
*Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Unicamp. Autor, entre outros livros, de O capitalismo pandêmico (Boitempo).
**Artigo publicado originalmente no Blog da Boitempo em 13 de maio de 2024
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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