As experiências de auditoria institucional da dívida pública que tive a oportunidade de participar no Equador e na Grécia significaram importantes ganhos para a luta da Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil. Foi no Equador que criei a expressão “Sistema da Dívida”, diante da completa evidência do funcionamento da chamada dívida pública como um sistema conectado com o modelo econômico produtor de escassez para a maioria da população, interligado também aos sistemas político, legislativo, grande mídia etc., de tal forma que a maior parte dos recursos públicos (de governo) se destinam à alimentação dessa chamada dívida que, em vez de servir de fonte de recursos para investimentos públicos e sociais, funciona às avessas, como um ralo sem fim! Esse sistema se reproduz em vários países, inclusive no Brasil, tanto em âmbito nacional como regional, atuando em estados e municípios.
Uma das engrenagens do Sistema da Dívida é a corrupção, tendo em vista que os mecanismos financeiros utilizados são flagrantemente corruptos, a exemplo da Bolsa-Banqueiro paga pelo Banco Central do Brasil aos bancos diariamente; uma remuneração que incide sobre dinheiro que sequer pertence aos bancos, mas à sociedade, e que atualmente responde por mais de 25% do estoque da dívida interna federal. No Brasil, o Sistema da Dívida é tão escandaloso que consome todas as receitas financeiras decorrentes da venda de títulos da dívida pública no gasto com os exorbitantes juros e demais questionáveis mecanismos financeiros do próprio Sistema da Dívida, gerando continuamente mais dívida sem contrapartida alguma. O próprio Tribunal de Contas da União já declarou ao Senado que a dívida interna federal não tem financiado investimentos no Brasil. Os gastos com juros e amortizações da dívida pública consumiram 46,3% do orçamento federal executado (pago) em 2022, recursos estes que poderiam ter sido destinados para as diversas demandas sociais urgentes da população brasileira.
Dentre os mecanismos questionáveis sobressai o uso de cerca de R$ 2 trilhões de títulos públicos doados pelo Tesouro Nacional ao Banco Central, que os utiliza principalmente para remunerar diariamente a sobra de caixa dos bancos. Cabe observar que, além de doar cerca de R$ 2 trilhões de títulos públicos ao Banco Central, o Tesouro também paga juros ao BC, incidentes sobre estes títulos doados. Esses juros recebidos do Tesouro constituem a principal fonte de receita do Banco Central, e é utilizada para pagar os juros diários aos bancos. Por meio desse mecanismo o Banco Central se torna uma correia de transmissão de recursos orçamentários aos bancos. Esse mecanismo ainda provoca elevação dos juros de mercado, prejudicando toda a economia, devido à escassez de moeda provocada pela esterilização desse grande volume de dinheiro no caixa do Banco Central.
Outro esquema flagrantemente corrupto e ilegal é o da securitização, que gera uma dívida pública que passa a ser paga por fora dos controles orçamentários, pois são desviados durante o seu percurso pela rede arrecadadora. Esse mecanismo está se tornando um modelo de negócios presente em várias situações, inclusive em Parcerias Público-Privadas. O funcionamento do esquema de securitização pode ser parcialmente compreendido por meio do diagrama a seguir, que evidencia o desvio de recursos para “contas vinculadas ao esquema” e, destas, diretamente para investidores privados, antes de alcançar os cofres públicos.
Além de não existir lei federal que autorize o desvio do fluxo de arrecadação para esse esquema, ele ainda é inconstitucional, tendo em vista que “vincula” diretamente parte da arrecadação tributária, ofendendo vergonhosamente o Art. 167, IV, da Constituição Federal.
A corrupção do Sistema da Dívida é tão descarada que esse esquema ilegal e inconstitucional já funciona em diversos entes federados e, sucessivamente, surgem novas tentativas de legalizá-lo, como mostra recente notícia que indica que a equipe econômica de Lula enviará projeto nesse sentido ao Congresso, e “estima arrecadação de R$ 30 a R$ 50 bilhões com proposta de venda de direito creditório”, porém, não diz quanto será desviado, por fora do orçamento, para pagar por isso. Em Belo Horizonte, o esquema rendeu R$ 200 milhões ao Município, que desviou mais de R$ 880 milhões para o reembolso ao BTG Pactual S/A, que atuou no esquema da PBH Ativos S/A.
Esse esquema da securitização irá minguar os orçamentos públicos, que ficarão subtraídos do dinheiro desviado prioritariamente para investidores privilegiados. Ademais, os juros oferecidos aos investidores privilegiados que têm acesso aos papéis financeiros emitidos por esse esquema são exorbitantes! Em Belo Horizonte, esses juros alcançaram 23% ao ano, e com garantia incondicional e irrestrita do Município, que desviava o fluxo de sua arrecadação tributária para o seu pagamento. Um escândalo!
Como os cofres públicos sustentarão esse esquema? Com emissões contínuas de papéis financeiros, a exemplo das “pirâmides” financeiras. Não é possível aceitar que o governo atual tente novamente legalizar esse esquema! Na página da Auditoria Cidadã da Dívida pode ser conferida uma proposta de carta a ser encaminhada ao Ministério da Fazenda e à presidência da República contra envio de projeto para legalizar esse esquema fraudulento, e outra carta para que parlamentares aproveitem o ensejo da PEC 45 e incluam dispositivo que proíba qualquer tipo de cessão de fluxo de arrecadação tributária.
* Artigo publicado originalmente em www.extraclasse.org.br em 18 de outubro de 2023
** Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.
|