Entre tantas caracterizações, a implementação do Novo Ensino Médio, por meio da Lei nº 13.415/17, pode ser considerada o maior ataque à educação básica e pública, desde a Lei nº 5.692/71, implementada pelos militares e as contrarreformas que municipalizaram as primeiras etapas do ensino básico, na década de 1990.
Em síntese, ao tornar obrigatórias apenas as disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática e Língua Inglesa, a estrutura curricular presente no dispositivo legal que assegura o Novo Ensino Médio provoca um assoreamento dos conhecimentos científicos, pois além de amortalhá-los em áreas genéricas que eliminam disciplinas elementares para o domínio básico da ciência, como Física, Química, Biologia e as Ciências Sociais, História e Geografia, prevê ainda o uso do tempo escolar para os chamados itinerários formativos, baseado em conhecimentos tácitos (fazer bolo, costurar, etc.).
No entanto, constatar o fato que o Novo Ensino Médio se trata de uma tragédia para as camadas populares não diz muito sobre as razões pelas quais ela (a tragédia) ocorreu. Em outras palavras, afirmar que o Novo Ensino Médio é um ataque com proporções avassaladoras à educação básica pública é apenas apreendê-lo em seu caráter fenomênico, isto é, em sua aparência imediata. E isso é insuficiente para armar política e teoricamente os grupos sociais que desejam combatê-lo. É preciso compreender as determinações que tornaram possível a materialização de um projeto tão deletério à educação dos filhos e filhas da classe trabalhadora brasileira.
Produção e reprodução de riqueza na sociedade capitalista estão determinadas pela acumulação de capital, por meio de formas pelas quais ocorre o trabalho que gera essa riqueza. Isso significa que a produção de riqueza está historicamente determinada em dois movimentos de divisão do trabalho: social e internacional.
Na universalidade capitalista é possível observar a cisão entre trabalho intelectual e braçal, entre quem planeja, administra e quem efetivamente produz a riqueza social. Portanto, a gênese da educação escolar moderna incorpora essa cisão como núcleo central, pois é mediante essa premissa que os sistemas educacionais se constituem como um aparato dual e nele se baseiam para sistematizar e socializar conhecimentos, assegurando o lugar de cada indivíduo na divisão social do trabalho.
A partir da 2ª Revolução Industrial, no século XIX, os chamados países capitalistas avançados (imperialistas) desenvolveram um padrão de reprodução do capital baseado na produção de bens maquinários e tecnológicos. Isso exigiu não somente o desenvolvimento e o vínculo da ciência com o setor produtivo, mas a constituição de uma força de trabalho que dominasse minimamente conhecimentos elementares. Assim, a educação escolar, mesmo sendo capitalista e dual, teve que garantir a socialização de elementos basilares do pensamento científico para a classe trabalhadora.
No Brasil e demais países latino-americanos, no entanto, o padrão de reprodução do capital carrega historicamente uma particularidade: a condição de se reproduzir mediante uma matriz econômica primário-exportadora que dispensa a generalização da ciência em seus aspectos produtivos e a ampla formação de uma força de trabalho minimamente instrumentalizada. Essa particularidade da formação social e econômica não deixaria passar impune a estrutura do sistema educacional, de tal sorte que a burguesia nativa nunca se preocupou em garantir direitos democráticos mínimos como a alfabetização dos trabalhadores.
Dessa maneira, não se tratou de um acidente de percurso que, entre as décadas de 1930 e 1970, período quando se consolidou a educação escolar moderna no Brasil, a estrutura educacional se caracterizou, por um lado, por conteúdos enciclopedistas voltados para uma minoria econômica e étnica e, por outro lado, por corporatura excludente, cujo exemplo massivo foi o exame admissional que impediu por décadas o acesso de parte significativa da classe trabalhadora ao antigo ensino secundário (Fundamental II e Ensino Médio).
A partir da Lei nº 5692/71, formulada e executada pela Ditadura Militar, a educação escolar pública, de forma gradual, porém permanente, se massificou em quantidade de matrículas, ao passo que se esvaziou em termos de qualidade de conteúdos científicos. Por qual razão? Porque foi no período ditatorial que se descobriu que, se na periferia do sistema capitalista o capital pode se reproduzir em termos produtivos dispensando a qualificação da força de trabalho, o mesmo não pode dispensar o potencial ideológico presente no aparato educativo como meio de contenção social, sobretudo quando as contradições entre capital e trabalho avançam. Não foi por outro motivo que disciplinas como Sociologia, História e Filosofia foram desfiguradas na chamada “Educação Moral e Cívica”.
Embora o advento da redemocratização, no final da década de 1980, tenha extirpado alguns dos entulhos ditatoriais na educação pública, o certo é que a aprovação da Lei nº 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) foi incapaz de garantir um projeto educacional que representasse a conquista de direitos democráticos básicos como erradicação do analfabetismo e socialização de conhecimentos elementares.
Perante isso, seria ingenuidade tomar a Lei nº 13.415 que instaura o Novo Ensino Médio como uma nuvem tempestuosa em céu de brigadeiro. Tudo ao contrário. O Novo Ensino Médio está irreversivelmente inserido no binômio massificação-esvaziada, criado pela sequência de políticas de Estado adotadas desde a Ditadura Militar.
A massificação da educação, quase sempre transvestida de democratização do acesso, significa para estratos mais pauperizados, a transição da condição de analfabetismo absoluto para a funcional, fenômeno detectável tanto na educação básica pública como no Ensino Superior privado. E o esvaziamento do conteúdo científico na educação pública, por sua vez, garante ao capital financeiro e suas fundações a possibilidade de transformar a educação escolar de direito universal em serviço mercantil direto e indireto.
Desse modo, o Novo Ensino Médio não foge ao destino manifesto que o capitalismo periférico brasileiro reservou à educação, isto é, ser um bolsão de contenção social e um grande negócio mercadológico. Mas sua implementação e manutenção não são simples manifestações da permanência de uma tendência histórica senão indicadores de um salto qualitativo dessa tendência para patamares irreversíveis.
Dado que o sistema capitalista avança com a Indústria 4.0 como uma medida para a superação de sua crise, os países centrais impõem não somente uma nova reestruturação produtiva, mas uma nova divisão internacional do trabalho. Em linhas gerais, isso significa a concentração tecnológica, sobretudo daquela aplicada na produção das chamadas mercadorias 3C (comunicação, computador e consumos eletrônicos), em alguns países imperialistas (EUA, Holanda, Alemanha e China). Essa concentração tecnológica se desdobra em concentração de conhecimento científico e centralização de força de trabalho qualificada, uma mão de obra altamente escolarizada capaz não apenas de dominar os códigos científicos, mas de aplicá-los à produção.
No sentido inverso, a entrada dos países capitalistas dependentes na Indústria 4.0 ocorre pela porta da subalternidade. Está reservada aos países da América Latina e da África a condição de fornecedores de bens primários indispensáveis à cadeia produtiva da Quarta Revolução Industrial, isto é, produtos agrícolas, extrativistas e minérios. Ao se espraiar para todo o tecido social e desaguar no sistema educacional, essa condição econômica significa a consolidação e hegemonização de setores do capital que podem se reproduzir sem uso massivo de uma força de trabalho qualificada formada pela sistematização e socialização do conhecimento científico via escola pública.
Afinal, o agronegócio e a mineração não demandam massivos projetos tecnológicos, pois não são a ponta de lança do desenvolvimento das forças produtivas, tampouco demandam em larga escala o uso de uma força de trabalho instrumentalizada. E, por outro lado, o capital financeiro é quem domina as maiores empresas privadas de serviço educacional.
Não é obra do acaso que a predominância desses setores na economia coincide com o Novo Ensino Médio, uma política de Estado cujo fundamento é a eliminação completa e explícita do pensamento científico na escola pública, uma política de Estado que não inocenta nenhum governo, seja ele de direita ou de esquerda, uma vez que foi arquitetada no governo Dilma Rousseff, aprovada no governo Michel Temer, implementada no governo de Jair Bolsonaro e mantida pelo governo Lula-Alckmin.
Assim, o Novo Ensino Médio é o ápice da natureza social e histórica da educação escolar pública brasileira, cuja função é mais de controle social do que de formação científica. A escandalosa formulação, aprovação, implementação e manutenção dessa Reforma corresponde à lógica e ao avanço do padrão de reprodução do capital primário exportador que, ao se desenvolver, provoca o subdesenvolvimento educacional. Sendo assim, a luta contra o Novo Ensino Médio, sob nenhuma hipótese, pode ser uma apologia ao passado que pariu o presente, mas um passo firme diante da necessidade de arrancar alegria ao futuro, ao estilo daquilo que nos diz o poeta russo Vladimir Maiakovski. E isso só se faz em plenitude, ou seja, unificando a luta contra o Novo Ensino Médio com a batalha contra a mineração em terras indígenas, contra o agronegócio que destrói a Amazônia, contra o avanço do ensino privado e com a defesa de uma educação escolar articulada ao trabalho útil à espécie humana, o trabalho emancipador que não será garantido pelo capitalismo dependente em estágio avançado de putrefação.
*Gisele é professora adjunta da Faculdade de Educação (Faced), da Ufam e pesquisadora em Educação Escolar e Economia da América Latina.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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