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  13/07/2023 - por José Alcimar de Oliveira





 

 

Em ambos os K, Kafka e Kundera, rege uma normatividade hermética. A liberdade não é possível porque a liberdade é perfeita. Tal é a solene realidade da lei. Não há paradoxo algum. A liberdade supõe certa visão das coisas, encerra a possiblidade mínima de dar sentido ao mundo (...). Porque, ao contrário dos senhores da história, Milan Kundera está disposto a dar tudo por seu próprio destino e pelo de seus personagens fora do “idílio imaculado” que pretende dar tudo e não dá nada. A ilusão do futuro foi o idílio da história moderna. Kundera ousa dizer que o futuro já aconteceu, bem debaixo do nosso nariz, e cheira mal.

 

E, se o futuro já aconteceu, só são possíveis duas atitudes. Uma, reconhecer a farsa. Outra, recomeçar, repropor os problemas humanos. Nesse recanto final do espírito cômico e da sabedoria trágica onde o idílio não penetra com sua luz histórica e histriônica, Milan Kundera escreve alguns dos grandes romances de nosso tempo (...) (Carlos Fuentes).

 

               Primeira Proposição: “Todos os romances voltam-se para o enigma do eu. No início, é a ação que distingue o indivíduo. Mais tarde, aprofunda-se o mundo interior, até chegar a Proust e Joyce. É o momento em que Kafka declara: basta de psicologia” (Milan Kundera).

 

              Corolário: Kundera se recusa a elaborar o futuro e a fazer análise do eu. Prefere falar do mundo interiorizado no eu. Por que reduplicar o que Kafka, pela via de K., já o fizera? Kundera escreve em meio a um futuro consumado, que lhe cerceia o presente. A literatura, sem abrigo no presente, é a única possibilidade que lhe resta para escapar ao futuro. Em A encruzilhada (o filme) está o paradoxo diabólico: nada nunca é como a gente quer que seja. Heráclito e Nietzsche guiam Kundera pela via insustentável da leveza do ser. Afinal, o devir que constitui o eu permanentemente escapa e é aprisionado pelo mundo.

 

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               Segunda Proposição: “Tenho medo dos professores para quem a arte é derivada da filosofia. Não esqueçamos que o romance conhece o inconsciente antes de Freud, a luta de classes antes de Marx, a fenomenologia antes dos fenomenólogos” (Milan Kundera).

 

               Corolário: Kundera recusava o enquadramento de sua produção romanesca aos limites abstratos da meditação filosófica, carente de situações e personagens. Por que não, ele rebatia, “meditação romanesca”? Sem se perder naquilo que Kant denominava de mundo da diversidade empírica ao se referir ao campo dos costumes, Kundera, por meio de seus personagens, capta com os olhos da literatura o que há de universal no particular de cada existência nominada e sob o peso das mais esmagadoras determinações.

 

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               Terceira Proposição: “O romance inteiro (A insustentável leveza do ser) não é senão uma longa interrogação. A interrogação meditativa (meditação interrogativa) é a base a partir da qual todos os meus romances são construídos” (Milan Kundera).

 

               Corolário: Em Kundera a vida de cada personagem, com suas determinações sociais e políticas, situadas na geografia do espaço e na história do tempo, assume o protagonismo – ainda que impotente – diante do que se afirma inelutável. O inelutável atiça o potencial de inteligibilidade que se oculta em cada existência. A literatura como interrogação meditativa é tão socrática quanto a socrática sentença de que uma vida sem meditação (sem interrogação) não é digna do ser humano.

 

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               Quarta Proposição: “Descobrir o que somente um romance pode descobrir é a única razão de ser de um romance. O romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance” (Milan Kundera).

 

               Corolário: Segundo Carlos Fuentes, “os personagens de Milan K. vivem num mundo onde todos os pressupostos da metamorfose de Franz K. se mantêm incólumes, com uma só exceção: Gregor Samsa, a barata, já não crê que sabe, agora sabe que crê. Tem forma humana, chama-se Jaromil e é poeta”.  Em Kundera o universo da opacidade transparente em que vive aprisionado cada personagem de Kafka migrou da literatura para vida. Kundera e Kafka se completam para, juntos, tentar compreender e escapar às sombra da luminosidade. “Para Sabina (segundo Kundera), viver significa ver. A visão é limitada por uma dupla fronteira: a luz intensa que cega e a escuridão total”. Difícil mesmo é não ceder ao extremismo. A vontade de transparência é uma forma de cegueira, inclusive moral. 

 

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               Quinta Proposição: “Existem limites antropológicos – proporções humanas – que não deveriam ser violados, tais como os limites da memória. Quando você acaba de ler um livro, ainda deveria ser capaz de se lembrar do começo. Senão, o romance perde sua forma, sua “clareza arquitetônica” e se obscurece” (Milan Kundera).

 

               Corolário: O que seria de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, sem a força formal da maestria de sua estética substantiva? Nada sobra na “clareza arquitetônica” do Velho Graça. Consegue dizer mais, em palmos e medidas, por impor à sua arte romanesca o princípio máximo do est modus in rebus, sun certi denique fines (há em tudo uma medida, há enfim certos limites). O comentário de Carlos Fuentes sobre os personagens de Kundera bem poderia abrigar o mundo das vidas secas de Graciliano Ramos: “Agora (em Kundera) o mundo de Kafka sabe que existe. Os personagens de Kundera não têm necessidade de amanhecer transformados em insetos porque a história da Europa central se encarregou de demonstrar-lhes que um homem não necessita ser um inseto para ser tratado como um inseto”. Graças a Kundera temos a ponte (impossível?) entre Kafka e Graciliano.

 

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               Sexta Proposição: “Na língua de Kant, mesmo a palavra “Bom dia”, devidamente articulada, pode parecer uma tese metafísica. O alemão é uma língua de palavras pesadas” (Milan Kundera).

 

               Corolário: O romance, em Kafka, Graciliano, Kundera (por que não em Juan Rulfo?), é a arte, em forma de metafísica reversa, de subtrair peso à existência e agregar impossível leveza ao mundo. Leveza sempre insustentável diante do onipresente peso a que a vida se obriga a carregar. Subtrair peso a tudo foi a lição incompleta deixada por Italo Calvino em suas propostas, também incompletas, para o terceiro milênio, que já se nos tornou próximo demais. Ao fazer uma leitura premonitória de Kundera, Kafka conheceu o insustentável poder da leveza e escreveu: tudo que não é literatura me aborrece.

 

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               Sétima Proposição: “O obrigatório é não sério, e o sério facultativo” (Milan Kundera).

 

               Corolário: O mundo (e o Brasil é mais do que meio mundo) está a cada dia sob as ordens do ridículo. Que força tem a filosofia (e as ciências) para subtrair peso ao ridículo onipresente e majestosamente vestido com aparência de seriedade. Sobre tudo pesa algo de compulsório e de impostura. Quanto de ridículo na ideia de felicidade compulsória. Falta riso e sobra cinismo, da mais baixa extração, sempre bem apartado e protegido da arte séria (e por isso facultativa) do necessário Diógenes. O riso é a forma das mais elaboradas e leves para enfrentar o peso do ridículo. O ridículo é imune à ciência. Segundo Heidegger, “a ciência não pensa” e, ao visitar Nietzsche, penso em contrário que cabe mais à arte literária do que à filosofia (conforme A Gaia Ciência) a tarefa urgente de “tirar à estupidez sua boa consciência”. Mas cedo ao filósofo matinal: existe filosofia mais literária do que aquela tecida pelo autor de Além do Bem e do Mal?  Castigat ridendo mores (rindo castiga os costumes), os maus costumes, sobretudo. Em Kundera a literatura adquire asas filosóficas menos pela abstração metafisica do que pelos voos da “meditação romanesca”. A ele cabe a sentença: alis grave nil. 

 

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, simula teoria literária, é base da ADUA – Seção Sindical, e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE).  Em Manaus, AM, julho de 2023, no ano da reconstrução nacional.

 



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