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  27/04/2023 - por José Luís Ferraro





 

Há na ideia de escola uma série de virtualidades. Isso implica em sua impossibilidade como significante de representação una, diferindo-se assim em múltiplas perspectivas.

 

A escola como espaço da educação, do ensino, da construção do conhecimento, das múltiplas aprendizagens, da participação política, da vida em sociedade e, portanto, do encontro com o outro. Espaço das alteridades, do desenvolvimento e da aplicação de metodologias, da avaliação, da experimentação e da experienciação técnica, mas também ético-estética, das descobertas e (re)conhecimentos, espaço do lazer da cultura.

 

Enfim, é onde esses e tantos outros devires se agenciam: a escola como vontade de potência.

 

Sob esta lógica – e a partir de todas essas possibilidades – considera-se a escola uma agência civilizatória.

 

Seus currículos, enquanto dispositivos de governamento biopolítico ou máquinas desejantes são, sobretudo (com todos seus fluxos e intensidades), empreendimentos civilizatórios, planos de imanência das relações sociais. Uma vida, diria o filósofo francês Gilles Deleuze.

 

Há no currículo desejo, ideais, anseios. Há investimento sobre os corpos, potencializando-os em nome de um projeto/modelo de civilização.

 

Não à toa que a emergência da escola moderna, bem como sua organização epistêmico-metodológica, foram fatores relevantes na perpetuação discursiva da modernidade como modo de racionalidade ainda vigente – fortemente impregnado na contemporaneidade.

 

Projeto civilizatório versus barbárie

 

O fato é que a educação como projeto civilizatório, necessariamente e organicamente, se opõe à barbárie; frase que recupera Theodor Adorno em Educação e emancipação (1969) e também Sigmund Freud a partir da leitura de Totem e Tabu (1913).

 

Neste, o psicanalista austríaco trabalha a ideia da transição do ser humano de um estado de natureza para o estado de cultura – o que perpassa a ideia de aprendizagem e, posteriormente, de ensino.

 

Mesmo que não haja uma escola instituída, trata-se da educação contra a barbárie, de um deslocamento que implica civilizar-se pela introjeção da lei, um aprender a lei.

 

No caso de Freud, ao abordar o totemismo como base das organizações sociais primitivas, o “contrato civilizatório pactuado” – cujos termos eram “aprendidos” e se ressignificavam permanecendo assim sob a forma de cultura – tratava, basicamente, de duas condições: a proibição ao parricídio e ao incesto.

 

Proibir o parricídio significa tomar o pai como a figura da lei totêmica, elemento que se inscreve com força na psicanálise freudiana, perceptível na relação da triangulação edípica: inscreve a lei o cuidador que detém o phallus.

 

A segunda proibição, tratada por Freud como o horror ao incesto, abre perspectiva para a possibilidade da exogamia ­– o que ao longo da história pode ter impedido a extinção de populações primitivas pela ausência de cruzamentos consanguíneos.

 

Já em Adorno, a questão da barbárie aparece de forma diferente. Para o filósofo da Escola de Frankfurt, o bárbaro se notabiliza como subjetividade anacrônica, deslocada; localizada sempre no passado em relação ao tempo presente.

 

Trata-se de um indivíduo que destoa dos costumes de uma época. Por exemplo: um reacionário é um bárbaro, porque em seu saudosismo doentio, vive totalmente comprometido com o passado.

 

Um negacionista é um bárbaro. Um antivacina é um bárbaro. Sujeitos que, pejorativamente, chamamos de “viúvas da ditadura”; os exaltadores de torturadores; armamentistas; militantes contrários aos direitos humanos; os favoráveis aos garimpos ilegais em terras Yanomami; adoradores de Hitler; neonazistas; os fascistas.

 

Todos bárbaros! E contra esses sujeitos, todos os dias, escolas e educadores se impõem, reafirmando seu compromisso de educar/civilizar.

 

Ataque a quem decide educar

 

Assim, parece haver algum sentido que investidas criminosas e discursos de ódio sejam direcionados às escolas. Afinal, os ataques são, exatamente porque o alvo são as escolas.

 

Como extensão disso, o projeto de disseminação do terror se concretiza com os assassinatos e lesões corporais realizadas por esses criminosos que matam e ferem quem decide se educar, ou seja, quem avaliza a existência da escola, optando por participar desse projeto civilizatório proposto pela sociedade e intermediado e dirigido pelas instituições escolares.

 

É ali, no espaço escolar, que a esses bárbaros – enquanto modos de existência precários – não lhes é permitido (co)existir.

 

Não porque um dia não foram acolhidos pela escola, mas pelo fato de que uma série de outros eventos balizados pelos discursos de ódio foram mais eficazes em seus modos de captura, tendo tornado tais subjetividades refratárias às instituições escolares.

 

O eros da civilização é preterido em relação ao tânatos de ideologias supremacistas.

 

Esta é uma das leituras possíveis para explicar o ataque a essas agências pedagógicas.

 

Ataques pelo que elas visam construir, pelo modelo de convivência social que propõem e que pacificamente são capazes transformar ao atuar não apenas na aniquilação da barbárie, mas ao investir na produção do pensamento crítico necessário à contraposição das formas de selvageria, truculência, bestialidade, ferocidade, desumanidade e psicopatia que caracterizam o perfil desses criminosos.

 

É da natureza da educação antagonizar a barbárie. Na frase definitiva de Adorno, a educação “é a primeira de todas as exigências para que Auschwitz não se repita”.

 

*José Luís Ferraro é doutor em Educação, pesquisador e professor universitário. Bolsista Produtividade do CNPq.

 

** Texto publicado originalmente no dia 14 de abril em www.extraclasse.or.br

 

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil 



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