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  15/09/2022 - por Marcos Rolim





 

 

 

Há muitos caminhos para uma decisão política, e cada problema público tem suas próprias exigências e dificuldades, o que demanda soluções específicas que precisam ser construídas concretamente. Temos uma boa chance de produzir soluções efetivas para esses problemas se os gestores públicos lidarem com o conhecimento, dialogando com as evidências científicas mais robustas; mas, antes disso, é preciso saber o que comove os gestores. Vale dizer: o que os sensibiliza como urgência e gravidade.

 

Quando pensamos em quem votar, por exemplo, é preciso identificar quem está, de fato, comprometido em reduzir o sofrimento no mundo.

 

Candidatos e candidatas com essa característica empática tendem a manifestá-la naturalmente, mobilizando a atenção pública sobre temas que dizem respeito às dificuldades vividas pelos grupos mais fragilizados. Por isso, suas propostas se articulam em torno de objetivos de bem-estar.

 

Somos um país fraturado há séculos pela desigualdade social, e objetivos de bem-estar em realidades como a nossa demandam amplas respostas do Poder Público, o que, não por acaso, a Constituição Federal consagrou entre os seus objetivos fundamentais (artigo 3º).

 

Conforme levantamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), somos o segundo país mais desigual do mundo, com 28,3% da renda nacional concentrada nas mãos do 1% mais rico (o primeiro colocado nesse ranking vergonhoso é o Catar).

 

Hoje, isso se traduz em múltiplos dramas que se cruzam. O primeiro deles, porque o mais urgente, diz respeito à fome e ao desemprego. Estamos falando de 33 milhões de brasileiros que não têm o que comer e de quase 10 milhões de pessoas com mais de 14 anos desempregadas e 39,3 milhões de pessoas na informalidade, segundo dados do IBGE do final de agosto deste ano.

 

Corpos matáveis

 

Além desses, devemos lembrar dos mais de 4,2 milhões de “desalentados”, termo usado pelo IBGE para designar as pessoas que não têm ocupação e que já desistiram de procurar emprego.

 

Fome e desemprego amplificam a realidade da exclusão social, criando o tipo de situação ideal para que famílias se endividem, sejam desalojadas de suas casas e enxotadas para áreas periféricas desprovidas de infraestrutura e saneamento. Essa mesma realidade expulsa crianças e adolescentes da escola, produz doenças, dissemina drogadição e alcoolismo, além de agenciar oportunidades criminais e vários tipos de violência.

 

Imaginar que essa realidade possa ser superada pelo mercado ou pela “liberdade de empreender” assinala uma forma especial de alienação que caracteriza o discurso dos “liberais-em-economia-e-neandertais-em-costumes” brasileiros.

 

O mercado é, sem dúvida, uma instituição muito importante que antecede o capitalismo e que, provavelmente, o ultrapasse. Sua força reside na extraordinária capacidade de mobilizar recursos a partir de iniciativas individuais, que buscam a maximização de benefícios e que identificam oportunidades que planejamento centralizado algum pode antever.

 

Em condições de efetiva concorrência, o mercado tende a selecionar os produtos e serviços com melhor relação custo/benefício. O problema começa quando as “condições de efetiva concorrência” se tornam marginais em uma economia oligopolizada.

 

No caso brasileiro, o quadro é agravado pelo simples fato da existência de milhões de pessoas que vivem à margem do mercado e que são, por todos os critérios macroeconômicos, pessoas “dispensáveis”.

 

Pelas leis do mercado, essas pessoas não contam, o que as faz “quase-humanas”. Fenômeno que, aliás, permite compreender por que a morte de mais de 680 mil brasileiros na pandemia – em sua grande maioria, pobres e negros – não é um escândalo nacional ou por que operações policiais em favelas no Rio de Janeiro podem se repetir, produzindo dezenas de “corpos matáveis” em cada subida de morro.

 

 

Lobos e cordeiros

 

Segundo o darwinismo social contemporâneo, o Estado é um “peso nas costas dos que querem produzir”. Bolsonaro cansou de repetir esse mantra desde a campanha de 2018, o que já anunciava sua intenção de desmontar as instituições da democracia e os instrumentos de proteção social e ambiental, assim como as agências de fiscalização e combate à corrupção e a legislação garantidora de direitos.

 

Um Poder Público que impede o “cidadão de bem” de pescar em área de proteção ambiental e que é capaz de autuar um deputado do quinto escalão que insiste em desrespeitar a lei deve ser mesmo um incômodo. Um sistema como o Coaf que examina depósitos suspeitos em contas privadas é ainda um incômodo maior e, claro, um Poder Judiciário capaz de exercitar os mecanismos de “freios e contrapesos” de um Estado Democrático de Direito é o “grande estorvo”.

 

No ideário político-ideológico do fascismo emergente no Brasil, a “liberdade” possui um sentido especial: ela aparece como sinônimo da realização das vontades do indivíduo, como se fosse possível concebê-la e exercitá-la sem relação com os demais, apartada da realidade social. Trata-se de uma liberdade “total”, inclusive para ignorar o sofrimento que as ações e omissões dos indivíduos possam causar. Uma espécie de liberdade inteira para os lobos que, naturalmente, significa a morte dos carneiros.

 

*Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

 

**Artigo publicado originalmente no dia 12 de setembro de 2022 no site www.extraclasse.org.br

 



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