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  15/07/2022 - por Gersem Baniwa





 

 

A educação escolar intercultural e multilíngue nas aldeias é uma necessidade pós-contato para garantir a permanência dos jovens nos seus territórios e contribuir para o desenvolvimento sócio-econômico dos projetos coletivos dos povos e das comunidades indígenas que estão inseridos no mundo globalizado. A educação escolar deve garantir uma educação de qualidade social e específica que respeite as igualdades e as diferenças existentes em cada sociedade multicultural, multilinguística e multiepistêmica. A comunidade constrói sua própria escola, com a participação efetiva dos alunos, professores, anciãos, pais e da comunidade como um todo, na busca por concretizar uma escola norteada pelas pedagogias indígenas, numa relação direta do ensino com os projetos de cada sociedade. A Educação Escolar na percepção dos povos indígenas, além de ser um direito básico, é estratégica na construção de seus projetos societários de futuro.

 

A educação escolar indígena intercultural, bilíngue e diferenciada surgiu como contraponto ao projeto colonizador da escola tradicional imposta aos povos indígenas que negava e condenava os saberes, as culturas, as línguas e os modos de vida tradicionais. A Constituição Federal de 1988 reconheceu o direito dos povos indígenas à uma educação própria, específica e diferenciada, superando a concepção equivocada da incapacidade indígena que fundamentou o princípio jurídico da Tutela, por meio do qual, era concedido ao Estado o poder e a responsabilidade de decidir e responder pela vida e destino dos povos indígenas do país, visão esta que imperou desde a chegada dos primeiros portugueses ao Brasil em 1500. A Constituição é explícita quanto à garantia dos direitos dos povos indígenas ao reconhecer suas culturas, tradições, línguas, organizações sociais, crenças, enfim, o direito de continuarem vivendo segundo suas culturas e suas livres escolhas.

 

A educação escolar indígena diferenciada é aquela educação trabalhada a partir da escola tendo como fundamento e referência os pressupostos metodológicos e os princípios geradores de transmissão, produção e reprodução de conhecimentos dos distintos universos socioculturais específicos de cada povo indígena. Ou seja, uma educação que garanta o fortalecimento e a continuidade dos sistemas de saber próprios de cada comunidade indígena e a necessária e desejável complementaridade de conhecimentos científicos e tecnológicos, de acordo com a vontade e a decisão de cada povo ou comunidade.

 

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) reafirma a diversidade sociocultural e linguística dos povos indígenas, garantindo a eles uma educação escolar pautada pelo respeito a seus valores, pelo direito à preservação de suas identidades, línguas e pela garantia de acesso às informações e conhecimentos valorizados pela sociedade nacional. Além disso, atribui à União o encargo do apoio técnico e financeiro a estados e municípios para o desenvolvimento de ações no campo da educação escolar indígena, com a garantia de incorporação de “currículos e programas específicos” e publicação sistemática de “material didático específico, diferenciado e bilingues.

 

Os números relativos à Educação Básica indicam um crescimento significativo na oferta da educação escolar às comunidades indígenas. O Censo Escolar MEC/INEP (2018) revelou que a educação escolar indígena alcançou 260.875 estudantes indígenas matriculados na Educação Básica em 2018 estudando em 3.345 escolas indígenas do país. A ampliação da oferta na educação básica resultou na ampliação da demanda ao ensino superior. Dados do Censo da Educação Superior MEC/INEP (2018) revelam que 57.706 indígenas estavam matriculados na educação superior em 2018, pouco menos de 10% da população indígena. Considerando os egressos indígenas nos últimos 20 anos podemos estimar que já são mais de 100 mil indígenas que acessaram o Ensino Superior.

 

É fato que nas últimas três décadas aconteceram conquistas importantes no campo da educação escolar indígena no Brasil, em grande medida pela articulação e pressão dos povos indígenas. Saímos de algumas poucas escolas em aldeias que tinham por objetivo integrar, civilizar e colonizar os povos indígenas, proibindo suas línguas e condenando suas tradições e culturas, para muitas escolas indígenas bilíngues ou plurilíngues e interculturais, nas quais 98% de professores são indígenas.

 

Resumidamente podemos reconhecer cinco importantes conquistas nos últimos 30 anos no campo da educação escolar indígena: a) avançado arcabouço legal e normativo, mesmo ainda pouco implementado: educação escolar específica, diferenciada, bilingue/multilingue, intercultural, pluriepistêmica e educação escolar indígena como direito; b) ampliação na oferta da educação escolar em todos os níveis, inclusive, na educação superior nas aldeias e territórios indígenas; c) ampliação do protagonismo indígena sendo que 96% de educadores (professores, gestores, técnicos) que trabalham nas escolas indígenas são indígenas; d) formação de professores indígenas por meio do Magistério e Licenciatura indígenas e; e) acesso ao Ensino Superior, onde 100 mil indígenas já ingressaram, inclusive na pós-graduação.

 

Os problemas e desafios também podem ser resumidos em cinco subcampos: a) situação precária dos contratos temporários dos professores indígenas que resultam em graves descontinuidades e ausência de aulas; b) infraestrutura precária, onde 1/3 das mais de 3000 escolas indígenas simplesmente não possui prédio; c) predominância de projetos pedagógicos, currículos e calendários escolares não indígenas nas escolas indígenas pela imposição dos sistemas de ensino; d) histórica demanda reprimida no Ensino Médio onde o número de matrículas em 2020 já era inferior ao do Ensino Superior e; e) escolas indígenas sem projetos pedagógicos, currículos, regimentos e calendários.

 

Alguns princípios pedagógicos da educação indígena são fundamentais, tais como: a) os prédios escolares nas comunidades indígenas são espaços para realização de múltiplas aprendizagens. Por isso devem ser construídos de forma a atender às suas demandas; b) as escolas indígenas devem funcionar de acordo com a organização da comunidade e do povo indígena; c) o currículo tematiza a vida dos povos e deve superar a dicotomia teoria x prática; d) a concepção de ensino está baseada na metodologia de pesquisa orientada para atender as situações concretas das realidades indígenas; e) o ensino nas escolas indígenas, especialmente no ensino médio, tem como finalidade a autonomia e a sustentabilidade política, econômica, gestão territorial e cultural dos povos indígenas; f) é importante que as crianças e jovens indígenas estudem em suas comunidades; g) os gestores públicos precisam ter uma formação específica para trabalhar com educação escolar indígena.

As propostas para uma educação escolar indígena que atenda os direitos, as demandas e os projetos de futuro do bem viver dos povos indígenas podem ser resumidos da seguinte forma: a) Criação e implantação de um Sistema Próprio de Educação Escolar Indígena; b) Implementação dos Territórios Etnoeducacionais; c) Criação de Fundo Específico para a Educação Escolar Indígena; d) Criação de um Conselho Nacional de Educação Escolar Indígena; e) criação de uma Secretaria Nacional de Educação Escolar Indígena; f) Criação de uma PluriUniversidade Indígena; g) prorrogação da Lei das Cotas – Lei 12.711/2012; h) Criação por Lei do Programa Nacional de Bolsa Permanência no Ensino Superior (graduação e pós-graduação); i) Criação por lei de uma Política Nacional de Formação de Professores Indígenas com financiamento específico e adequado e garantia de formadores específicos, ampliando vagas e criando novos cursos de Pedagogia e de Licenciaturas Interculturais nas Universidades Públicas e nos Institutos Federais; j) criação de um Programa Nacional de Apoio a Infraestrutura, Transporte e Alimentação Escolar com financiamento específico e modelos administrativos apropriados; k) transformação do projeto Ação Saberes Indígenas na Escola em uma Política Pública Nacional Estruturante e Permanente de formação continuada de professores indígenas e produção e publicação de material didático específico (bilingues/multilingues) com recursos financeiros adequados para sua execução; l) criação das categorias de Escola Indígena e Professor Indígena, regulamentação dos planos de cargos, carreiras e salários e realização de concursos públicos específicos e diferenciados para professores indígenas, respeitando a Lei do Piso Salarial Nacional, por todos os sistemas de ensino que trabalham com redes de escolas indígenas no país; m) realização periódica de Censo Nacional da Educação Escolar Indígena específica; n) Criação de um Programa Nacional de Apoio a Elaboração de Projetos Políticos-Pedagógicos Indígenas – PPI de todas as escolas indígenas do Brasil que garantam a execução dos currículos e calendários escolares próprios, elaborados pelas escolas e comunidades indígenas, de acordo com as suas especificidades e contextos sociolinguísticos, culturais, territoriais e ambientais; o) Criação de um Programa Nacional de Ampliação da Oferta da Educação Básica, especialmente o Ensino Médio e a Educação de Jovens e Adultos, integrados à Educação Profissional e Tecnologias nas comunidades e aldeias indígenas, bem como em contextos urbanos e em terras em processo de demarcação ou em situação de litígio; p) criação de um Programa Nacional de Acesso às Novas Tecnologias, com cursos de inclusão digital e de tecnologias educativas, além de estrutura física adequada para todas as escolas, núcleos e extensões, por meio da instalação e manutenção de laboratórios científicos e de informática com acesso à internet de boa qualidade nas escolas indígenas, bem como equipamentos com memória suficiente para apoiar a documentação digital e a prática pedagógica diferenciada.

 

Por fim, é essencial não esquecer que falar de povos e de educação escolar indígena é falar de 13% do território nacional. Na Amazônia Legal, as terras indígenas somam 23% da região. Essas terras apresentam indiscutível importância estratégica para o país, haja vista a sua inestimável riqueza da sociobiodiversidade, ainda altamente preservada e protegida pelos seus habitantes ancestrais. As reivindicações dos povos indígenas por educação, por terra, por recursos naturais, por um meio ambiente saudável, pelo reconhecimento de sua organização social, por suas estruturas políticas próprias, por sistemas econômicos sustentáveis, por seus símbolos de identidade, encontram cada vez maior justificação moral e ecológica na sociedade brasileira e mundial.

 

*Gersem Baniwa é graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). Foi co-fundador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).

 

**Artigo publicado originalmente no dia 13 de julho de 2022 no Extra, da Rede Globo



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