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  09/03/2022 - por José Alcimar de Oliveira





 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Mãe Coragem: Por quanto tempo é que não tolera injustiça? Por uma hora, ou duas? Pense bem! Nunca se perguntou isto, embora seja a coisa mais importante: porque é uma desgraça, na prisão, quando a gente percebe de repente que já está tolerando a injustiça.  A guerra não é mais do que  (...) outra maneira de continuar o comércio (Brecht, Mãe Coragem e seus filhos).

 

01. Considero uma divergência teológica de somenos discutir se Maria de Nazaré, mãe de Jesus, teve ou não outros filhos. O próprio Jesus de Nazaré relativizou a maternidade biológica ao se interrogar diante dos discípulos: Quem é minha mãe? Quem são minhas irmãs e meus irmãos? Dirigindo-se aos que o cercavam, com inegável distanciamento brechtiano, o próprio Jesus responde: eis aqui, neste lugar, minha mãe, minhas irmãs e meus irmãos. São todos aqueles que, coletivamente, estão construindo a utopia do Reino. A vocês os tenho e as tenho como meu irmão, minha irmã e minha mãe (cfr. Mt 12,48-50). A maternidade da ideologia burguesa é intrinsecamente excludente e egoísta. Jesus de Nazaré socializa sua mãe. Maria é mãe coletiva. Segundo Leonardo Boff, ela é o “rosto materno de Deus”. Em Nuestra América, seu rosto de mulher, ao contrário da assepsia estética da indústria cultural hollywoodiana, é antes indígena e negro.

 

02. Sem que tivessem conhecido a peça Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht, as mães da Comunidade de Jacarezinho na zona norte do Rio de Janeiro agiram como mães coletivas e desceram o morro como milhares de Annas Fierlings politizadas. À diferença da Guerra dos Trinta Anos (falsificada como guerra religiosa), tal como um exército de Annas Fierlings e sua carroça, sob a ordem da zona escura bélica e cognitiva, as mães de Jacarezinho se dirigiram ao Brasil e ao mundo para dizer que a guerra não mata a todos igualmente. A população negra está sempre no início da fila mortal.  Em toda guerra, os tiros se dirigem sempre aos subalternizados, “quase todos perdidos de arma na mão”. Não são balas perdidas. E mesmo quando chamadas de perdidas, as balas têm origem, porque são disparadas, em última instância, por ordem do capital genocida que dirige o Estado. O Estado brasileiro produziu e mantém sob cerco muitas Faixas de Gaza.

 

03. Brecht pôs em cena sua peça há quase 81 anos, em 19 de abril de 1941. A estreia ocorreu em Zurich e, seguramente, deve ter incomodado a suposta neutralidade do Estado suíço, reconhecido por abrigar em segurança lucros e dividendos extraídos das trabalhadoras e dos trabalhadores, na guerra e na paz, pelas mãos invisíveis do capital. Mãos invisíveis que deixam rastros de sangue bem visíveis e convertidos em criminosa espetacularização mediática, como ocorreu na chacina de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, no dia 06 de maio de 2021 e agora, em março de 2022, na guerra intercapitalista entre as forças do capital feito Estado Interventor pelo Império e o Estado russo não menos dominado pelo capital pária e apátrida.  

 

04. A coragem das mães de Jacarezinho é a prova de que ainda correm dignidade e resistência entre os subalternizados. Jacarezinho, sem Antônio Conselheiro, sem Brecht, se recusa, no século XXI, a ser a Canudos destruída pela República que nunca foi ou a Alemanha dominado pelo nazifascismo. Menos ainda ser manipulada pela ideologia, igualmente de extração nazifascista, que, no Brasil e no mundo, sob a máscara do discurso vazio em defesa de Deus, da Família, da Pátria, da Liberdade, da Democracia, da Propriedade Privada, destrói e corrói todas as razões, e conduz o povo ao abismo da barbárie social.     

 

05. A pensadora política Hannah Arendt, insuspeita de inclinações marxistas e criticada por seu olhar ideologicamente embaçado sobre as causas do totalitarismo, afirma que um ser que se recusa a assumir “responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-lo de tomar parte em sua educação”. As mães de Jacarezinho deram um exemplo de “responsabilidade coletiva pelo mundo” em 2021. As comunidades faveladas do Rio de Janeiro e do Brasil têm direito ao Estado Democrático de Direito. Mas, nas palavras de Florestan Fernandes, aqui vivemos sob a força do encurtamento da memória, que dura pouco, às vezes um instante.

 

06. Neste 08 de março de 2022, não falemos em Dia da Mulher, data tão cara ao gosto burguês pela falsificação da vida. Falemos antes do Devir Internacional da Luta das Mulheres Trabalhadoras. Aprendamos todas e todos com mulheres irredentas, feitas de coragem, de luta prática e teórica, como Elizabeth Altina Teixeira, nascida em 1925 na Paraíba, mulher pobre, camponesa, militante, plena de consciência de classe e dignidade, imortalizada pelo melhor documentário do cinema brasileiro, Cabra marcado para morrer, do inigualável Eduardo Coutinho. Mulheres como Rosa Luxemburgo, paradigma do feminismo classista; Carolina Maria de Jesus, negra, favelada e literata maior desse país estruturalmente racista e sob o poder da misoginia e da logofobia; Simone de Beauvoir, Conceição Evaristo, Angela Davis e a nossa Conceição Derzi, mulher da contraordem e avessa ao morno, que partiu contra a nossa vontade em 10 de fevereiro de 2022.

 

07. O que querem as mulheres trabalhadoras?  Por que lutam e não se rendem diante da opressão de classe e de gênero? Querem antes de tudo o direito de ser e de viver. Querem trabalho digno e salário justo. Querem saúde, educação, espaços de cultura, bibliotecas, teatro, cinema, livros e não armas. Enfim, viver. Viver com alegria, porque – nas palavras de Espinosa, o filósofo dos bons afetos –  “a multidão livre conduz-se mais pela esperança que pelo medo, ao passo que uma multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte”.  Saudações de vida, na alegria da luta, a todas as mulheres que se alimentam da ontologia social do cuidado pela vida.

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA-Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, no Devir Internacional da Luta das Mulheres Trabalhadoras, em oito de março do ano da virada de 2022.

          



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