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  20/12/2021 - por José Alcimar de Oliveira





 

Temos que entender que tempo não é dinheiro. Essa é uma brutalidade que o capitalismo faz como se o capitalismo fosse o senhor do tempo. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida (Antonio Candido, 1918-2017).

 

 

01. O sistema do capital é um moinho de expropriação do tempo, porque ao capital (e ao capitalista) só interessa o tempo como meio de produzir mais-valia, trabalho não pago, roubado à classe trabalhadora. A grande luta da classe trabalhadora consiste em se apropriar do tempo como espaço da formação humana, para assim tecer a vida de forma livre e verdadeiramente produtiva, conforme a sábia observação do mestre Antonio Candido na epígrafe que encima este escrito. Como a vida, o tempo é da esfera da dignidade. A vida pertence ao reino dos fins e “está acima de todo preço e, portanto, não permite equivalente, então (a vida como o tempo) tem ela dignidade”, escreveu Kant em sua Fundamentação da metafísica dos costumes. No reino do capital, a dignidade cede lugar à venalidade. Paulo Honório, um bom exemplo de personalidade venal e sobre quem falarei a seguir, viveu intocado pelos princípios da ética kantiana.  

 

02. O tempo do tecido da vida não guarda comensurabilidade com o tempo administrado pela produção capitalista. Ao analisar o romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos, o marxista irredento Carlos Nelson Coutinho captou a intenção literária do velho Graça ao afirmar que o conteúdo da primeira parte do romance destina-se a construir, na pessoa de Paulo Honório, a personalidade de um burguês. Paulo Honório é a personificação do tempo administrado pelo ethos capitalista. Num breve e denso ensaio intitulado O mundo à revelia, João Luiz Lafetá aponta que em Paulo Honório se realizam as três características e os três ideais da burguesia: “ação transformadora, velocidade enérgica e posse total”. Paulo Honório “nada problematiza, de nada duvida, em ponto algum vacila. Tudo que importa é possuir e dirigir o mundo. Para tanto, ele conhece os meios. E não pensa sobre eles: aplica-os”. Paulo Honório incorporou ou foi incorporado com a medida burguesa do tempo.

 

03. Sob o devir do capital, os solstícios, de inverno no Norte ou de verão no Sul global, são regidos  e orientados pelo mesmo vetor consumista. O consumo é a linguagem universal do globocapitalismo. No reino da felicidade venalizada há pouco lugar para a alegria. A luminosidade falsa e depressiva dos shopping centers, por mais cintilante que seja, não consegue ocultar a miséria real de um Brasil dilacerado pela desigualdade social. O jovem Marx dos célebres Manuscritos, encontrados incompletos e na forma de esboço, e somente conhecidos nos anos de 1930, já indicava os efeitos antropológicos produzidos pelo cretinismo da posse. A posse nos faz cretinos e envenena com diferentes medidas a burguesia e o proletariado. Há inegável retrocesso civilizatório quando se borra a fronteira entre sonho de consumo e satisfação de necessidades reais. Mesmo ao tempo de quem pode é impossível satisfazer sonhos de consumo.

 

04. Nosso educador maior, Paulo Freire, ao referir-se às elites (que, na verdade, pouco têm de elite no sentido sociológico do termo), reconhece o quanto seu poder dominador inocula “nos indivíduos o apetite burguês do êxito pessoal”. A posse de poucos da classe burguesa, não interessa a que custo social para o proletariado, rural ou urbano, é a verdadeira medida do êxito no sociometabolismo do capital. Como libertar o tempo dos grilhões da posse capitalista? Como imprimir no tempo a medida da solidariedade de classe, inclusive na própria classe oprimida? Como organizar a esperança de classe entre os que vivem o cotidiano da opressão de classe? Como livrar-se da ação dos agentes anfíbios, daquela figura que manipula a vontade do povo?  À diferença do populista, o líder popular fortalece no povo o seu poder de classe. O populista, conforme descreve Paulo Freire, ao fazer o jogo “entre as massas e as oligarquias dominantes, ele é como se fosse um ser anfíbio. Vive na ‘terra’ e na ‘água’. Seu estar entre oligarquias dominadoras e massas lhe deixa marcas das duas”.

 

05. Tínhamos que adentrar a terceira década do século XXI para a amargar que a racionalidade do capital, no Brasil, além do que o mestre Antonio Candido caracterizava como “progresso desigual” também implica retrocesso comandado pela ordem do crime, da destruição e da morte. No Brasil do século XXI há muito do Congo do século XIX retratado pelo Coração das trevas de Joseph Conrad. Meu sonho literário seria participar de um colóquio estético entre Joseph Conrad e Graciliano Ramos, mediado por Antonio Candido. Há trevas no coração do poder no Brasil do século XXI. A ordem do capital destravou o tempo do que há de pior e mais regressivo do passado que julgávamos passado. O caminho do futuro é agora presidido pelas sombras que se apoderaram do presente. Estamos sob a ordem do Anjo da História da versão benjaminiana, que se move pela retrotopia e denomina de progresso a tempestade que nos assola.

 

06. No devir histórico da Filosofia encontramos em Santo Agostinho uma das mais belas definições do tempo, o tempo como distensão da alma. A alma é pensada como medida do tempo. In te anime meum tempora metior (em ti, ó espírito meu, meço os tempos). Trata-se de uma medida psicológica e antropológica do tempo. Platão vê o tempo como um tipo de imagem móvel da eternidade. Ao ser social é impossível não ter outra senão uma imagem móvel do que se apresenta como eterno. Não existe aí problema maior. Mas o que pensar do Brasil do século XXI ao tentar eternizar o tempo como retrocesso? Tempo como artifício da morte ou tempo como artesania da vida? Sem destruir a memória nem falsificar a história e menos ainda mitificar o passado, como fazer o Anjo da História mover-se da retrotopia para a utopia? Ou ao menos, sem perder o sentido da utopia, como construir heterotopias possíveis para escapar a tempos tão distópicos?

 

07. Penso não haver medida mais elevada do tempo do que aquela do artesanato estético, em que o artista se constrói a si mesmo como subjetividade individual e social na obra em que investe, de forma livre, sua inteligência e criatividade. Nenhum regime autoritário consegue conviver com o poder da arte. A verdadeira arte, ao produzir conhecimento, é necessariamente libertária. Milan Kundera admitia que a única moral a se exigir de uma obra de arte é a moral do conhecimento: “o romance que não descobre uma porção até então desconhecida da existência é imoral. O conhecimento é a única moral do romance”. A proscrição da arte, a tentativa de indexá-la, a perseguição ao sujeito histórico criador da obra de arte, as diversas formas de censura, velada ou explícita, é tudo, na verdade, manifestação de ódio ao conhecimento.  As artes são canteiros de cultivo e de disseminação de bons e libertários costumes. “Tenho necessidade é de um novo Grande Costume, que devemos instituir imediatamente: o costume de refletir novamente diante de cada situação nova” (Bertolt Brecht).

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 19 dias de dezembro do ano do morticínio de 2021. 

 

Foto: Mural de Diego Rivera

 



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