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  30/05/2022 - por Harald Sá Peixoto Pinheiro





 

Para onde estendermos o olhar inquieto se revela uma “paisagem patológica” no horizonte. A afirmação é do filósofo coreano, naturalizado na Alemanha, Byung-Chul Han, que desenvolve atividades de professor de Filosofia e Estudos Culturais, na Universidade de Berlim. Han tem se tornado bem conhecido dos leitores acadêmicos brasileiros, tendo publicado mais de uma dezena de obras que refletem aspectos difusos e perturbadores da sociedade contemporânea. Sua primeira grande obra de impacto e pelo qual se tornou mais conhecido no Brasil foi a Sociedade do Cansaço (2015). Um surpreendente e arrebatador diagnóstico acerca dos avanços perversos do capitalismo, em sua mais atual dissimulação e performance teatral de sociedade do desempenho e da positividade. Nesse atual cenário se revelam suas ardilosas atualizações na lógica de acumulação e, principalmente, em artimanhas cada vez mais sorrateiras na exploração do trabalho, amplitude de adoecimentos e obstinada precarização do ambiente laboral.

 

Outros fatores se tornam nocivos ao trabalho docente de universidades públicas, já bem conhecidos por todos, desde o excesso de tarefas até a urgência de ampliação de concursos de carreira que possam desacelerar o processo de terceirização e contratação de professores temporários. Uma parte considerável dessa pressão e precarização deve-se, em especial, a um redirecionamento perverso do mundo do trabalho. Na sociedade de mercado, estabelecimentos públicos de ensino são vistos como espaços que não produzem lucros e exigem, ainda assim, grandes investimentos.

 

É bem conhecida a linha de entendimento e ação da parte de uma sociologia crítica do trabalho e daquilo que se convencionou chamar – a partir dos estudos de Christophe Dejours –, de psicopatologia do trabalho. Chamaremos esse cenário que aflige a todos, em evidentes condições materiais e objetivas de existência, pelo critério da negatividade em que tais sintomas desempenham em todo o conjunto de nossa fisiologia, no âmbito presencial ou digital do trabalho, adaptando e comprometendo (simultaneamente) músculos, artérias, visão, neurônios e sinapses a um processo de amplo adoecimento físico. Certamente sem esquecer o envolvimento psíquico e diferentes modos de subjetividades claramente envolvidos, como humores existenciais, sentimentos e emoções.

 

Pretendemos discorrer nessa curta análise uma contraposição aos aspectos mais evidentes da negatividade do trabalho e adoecimento docente. Descrever outros aspectos pouco perceptivos e, por vezes, subliminares, que se orquestram na ambiência universitária sob a perspectiva da positividade e ilusão do desempenho. Diante da negatividade, o trabalhador docente dispõe em sua linha de ação um viés necessariamente defensivo e combativo, emoldurado e instrumentalizado pela condição de esclarecimento e engajamento político-ideológico que lhe possibilita a luta resiliente de sua categoria por melhores condições de trabalho e salários. Esses aspectos constituem importantes elementos balizadores de sua consciência de classe e enfrentamento coletivo de tais distopias do trabalho.

 

Temos enfrentado os aspectos da negatividade, com compreensivo desgaste da categoria docente engajada na luta por salários e melhores condições materiais e imateriais de trabalho. Os aspectos da positividade, entretanto, por se revelarem em maior grau de simulacro, têm se mostrado ainda quase imperceptíveis. Certamente um grande vazio nesse outro campo de luta e compreensão dos fenômenos.

 

Sob a ótica da positividade esses fenômenos têm se revelado face a uma atmosfera bem mais preocupante. Defenderemos a ideia que a “cadela no cio” do fascismo (insight atribuído a Brecht), assim como as ambições autônomas desencadeadas por forças neoliberais são bem mais nocivas sob o signo da positividade e do desempenho orgulhoso da categoria docente. Aliás, essa máscara de positividade nada mais é do que um efeito mais cruel daquele revelado pela negatividade, num formato de simulacro e marketing social.

 

Nossa pretensão assume também dois outros aspectos que são correlatos. O primeiro, de “atualizar” alguns pressupostos da análise hegeliano-marxista e da psicanálise freudiana, respectivamente, no tocante ao aperfeiçoamento da lógica do senhor-escravo e da manifestação dos desejos numa sociedade opressora. Tomaremos como colaborativas as recentes contribuições de Byung-Chul Han, no sentido de ousar uma requalificação de nuances oportunas na obra de Marx e Freud para o contexto do século XXI.

 

 

O segundo aspecto deve-se à obra de Christophe Dejours, de profundidade incontestável para tratar adequadamente o tema que articula trabalho e adoecimento. Referimo-nos ao trabalho clássico, já conhecido entre os brasileiros, A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho (1992). Sobre esse aspecto, em especial, pretendemos avançar nos estudos direcionados por Dejours, para o atual cenário das novas formas de adoecimento e como esses quadros patológicos mais conhecidos de psicopatologias do trabalho vêm assumindo uma dinâmica bem mais agressiva e avassaladora.

 

Começaremos primeiramente por Dejours e posteriormente recorreremos às ponderações sobre cansaço, desempenho e positividade em Han. Entendemos oportuna a contribuição de outros pensadores como a fenomenologia Merleau-Ponty e traços pontuais do existencialismo de Albert Camus. Num dado momento, essas pontas dos argumentos se estreitam e se revelam coimplicativos quanto ao crescimento de estratégias que articulem a obrigação de desempenho em meio a tantas formas de pressão produtivista.

 

Novas Patologias do Trabalho

 

Nos últimos anos como colaborador de Programas de Pós-Graduação na Ufam e ligado ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia, temos acompanhado algumas pesquisas e projetos que articulam a temática do trabalho e adoecimento, dentro e fora do contexto pandêmico. Todos incluem, acertadamente, a obra de Dejours mencionada acima, com raríssimas e imperdoáveis exceções. Seu pioneirismo e recomendações teórico-práticas como psiquiatra e psicanalista são imprescindíveis para lidar com essa “paisagem patológica” a que nos referíamos acima. No entanto, a obra inaugural de Dejours foi assentada num cenário de compreensão psicopatológica de final da década de 70 do século que passou e publicada inicialmente na França em 1980. O contexto dessas questões se agudizou e se amplificou nos anos 1980, 1990 e no atual contexto do século XXI. Ele próprio, a partir de 2004, tem chamado atenção em pesquisas e artigos mais recentes sobre as novas configurações em que se encontram as pesquisas nesse campo.

 

Os desgastes físico-psíquicos alcançam níveis cada vez mais preocupantes e que são potencializados na ortodoxia e no império da ordem de muitas universidades. Os recentes estudos de pesquisas etiológicas têm revelado a direta correlação entre a evolução da organização do trabalho em cumplicidade com as novas psicopatologias. Tem-se observado as estratégias que estimulam a avaliação de desempenho e pressão produtiva, estimulam também na mesma proporção, o crescimento de trabalhadores em flagrantes condições de adoecimento emocional, submetidos a dolorosos sismos existenciais de isolamento e solidão, correlativos a uma existência à deriva. Nessa perspectiva, corrobora a análise de Han em articular a sociedade do desempenho ao crescimento assustador de seus efeitos colaterais, como depressão, sintomas de déficit de atenção, síndrome de Burnout, hiperatividade, transtorno de personalidade, ocorrendo de forma mais precoce.

 

As novas pesquisas de Dejours chamam atenção para uma mudança de enfrentamento de tais questões, a começar pela forma de como elas – no atual contexto – devem ser designadas e melhor conceitualizadas. Não apenas de psicopatologias, mas de psicodinâmicas, em razão de como esse “combo” de adoecimentos vem sendo largamente aclimatado internamente nas modernas estruturas organizacionais de trabalho. No requisito exploração de forças produtivas e subtração e/ou subsunção de energias psíquicas, o capitalismo tem universalizado globalmente seu único idioma e linguagem. A obra de Herbert Marcuse, Eros e Civilização, já havia analisado tais efeitos.

 

A psicodinâmica – mais que a psicopatologia – deve ser enfrentada como um novo modus operandi das organizações de trabalho. Em meio a toda maquiagem no ambiente de produção, tentam adaptar as condições de precarização a condições satisfatórias, sem esconder seu rosto cruel de falsa empatia.

 

A obra de Dejours completou 41 anos. Há pelo menos 20 anos ele vem atualizando suas pesquisas. Em 2012 lançou na França um novo desdobramento de suas investigações, ampliando consideravelmente novas patologias. A lista é grande de doenças que não estavam presentes na sua obra original de 1980. Incluem uma variedade de processos de adoecimento ligados exclusivamente à ambiência do trabalho: transtornos de humor, psicoses, violências, hiperatividade, tendências ao suicídio e suicídio, patologias de assédio moral e sexual. Agregam também novas estratégias de compreensão e enfrentamento dessas distopias. No entanto, além daquelas patologias já classificadas no CID, Dejours acrescenta em seu estudo muitas outras formas de sofrimento que não chegam a ser configuradas como psicopatologias, mas se revelam tão ou mais preocupantes quanto aquelas.

 

As questões relacionadas a depressão, insônia, ansiedade, síndrome de Burnout e tendência ao suicídio têm sido as mais preocupantes em razão de um quantitativo assustador de trabalhadores acometidos por essas patologias. Todas essas, somadas ao crescente endividamento por consumo de drogas, compulsividades das mais diversas ordens, incapacidade de sentir prazer, disfunções sexuais, incapacidade de descontração são as formas de existência adoecida que vão assumir um protagonismo de subsolo.

 

Dejours em novos estudos da psicodinâmica do trabalho coloca em relevo um rol de sofrimentos invisibilizados no trabalho e que chegam a outros espaços da vida social do trabalhador, igualmente invisíveis, acarretando um jogo perverso de sintomas que arrebatam também o domicílio, as relações afetivas de familiares e as relações interpessoais em grupos de amigos. A esse respeito, acrescenta Dejours (2009, p. 51):

 

As reações afetivas à resistência do real e ao fracasso não são visíveis. A irritação, o desencorajamento, a dúvida sobre a própria competência não se veem. Minhas insônias, os efeitos do meu mau humor sobre meus filhos, sobre meu cônjuge, não se veem nos locais de trabalho [...] O sofrimento, de maneira geral, não pertence ao mundo visível. O sofrimento, como todos os afetos e sentimentos, como toda subjetividade [...] se experimentam de olhos fechados.

 

Adoecimento e Invisibilidade do Corpo Fantasma

 

O cenário do trabalho e do adoecimento entre os docentes universitários não configura um drama à parte. Entre os professores, o mundo do trabalho não é apartado do mundo real, e a antiga separação entre trabalho manual e trabalho intelectual em nada acrescenta ao enfrentamento do sofrimento. Todos indistintamente são afetados e o que se espera de escolas e universidades como espaços mais humanizados, tolerantes e sensíveis talvez possa nos decepcionar após folhear algumas páginas de O Mal-Estar na Civilização, de Freud, Eros e Civilização, de Marcuse ou mesmo Modernidade e Ambivalência, de Bauman.

 

As condições de trabalho têm provocado uma constelação de sintomas que se aclimatam por meio de um mal-estar difuso, muitas vezes indiscernível, invisível e até inominável. A ambiência se faz mais patológica precisamente por conta de sua sutil invisibilidade, frequentemente percebida em níveis individuais, em porções fragmentadas, a semelhança de espaços – também fragmentados – que adoecem no plano cognitivo, por se tornarem obcecados apenas pela competência técnica e desidiosos em competência humana. Esta última dimensão ainda constitui uma grande reserva de expectativas para futuras esperanças ainda pouco valorizada nos espaços de competição e hostilidade intelectual.

 

A maior parte das organizações de trabalho está condicionada ao olhar de superfície em que a psicodinâmica só é capaz de enxergar o adoecimento individual quando este se anuncia formalmente. O olhar de profundidade que ausculta ruídos coletivos fica obliterado. Essas organizações se tornaram, elas próprias, produtoras de doenças. Na universidade em especial, soma-se a isso, o grau elevado de “egos hiperativos” em meio as pressões de pontuação no Lattes, todos sedentos por atender às exigências da Plataforma Sucupira, muito semelhante da análise feita por Kafka, em sua Colônia Penal. Ali, os carcereiros – também encarcerados – são seres autômatos que alimentam vorazmente e atendem sem pensar os desejos da máquina de tortura, sempre insaciável. Essa alegoria revela o quanto nossos modos de subjetividades são mutilados, sem que percebamos a violência simbólica, ali naturalizada.

 

Desde Saint-Exupéry, aprendemos que o essencial é invisível aos olhos. E isso tem se configurado nas universidades – no plano do adoecimento coletivo – como um infeliz e terrível axioma. Explicamos melhor. Dejours tem chamado atenção para esse fenômeno da invisibilidade, o que avaliamos bem semelhante da percepção de um “corpo fantasma”, analisado por Maurice Merleau-Ponty, em sua genial Fenomenologia da Percepção (1999), em estudos que relacionam o corpo a uma fisiologia mecanicista e os acontecimentos psicofísicos nos hospitais franceses. Tais acontecimentos transpuseram os muros hospitalares e invadiram salas e corredores universitários.

 

A invisibilidade de tais sintomas tem produzido mutilações coletivas que ecoam e vagam recalcadas por essa organicidade doentia tão refratária à sensibilidade humana. Uma prótese substitui um membro físico amputado, mas o que fazer quando a mutilação não se reveste apenas de um componente físico? Será a adição de mais trabalho que irá substituir o sofrimento recalcado? A invisibilidade do sofrimento em espaços de gestão e poder está também nos levando à criação de próteses fantasmas. O certo é que esses reflexos dessa invisibilidade recalcada ainda pulsam, constituem-se de uma existencialidade paralela, feito uma sombra que nos persegue. Só os escondemos dos olhos adestrados, domesticados e sedentos por fluxos produtivos da dinâmica organizacional. Ainda assim, tais sombras dessa existencialidade recalcada constituem uma relativa independência, pois carregam – latejantes – os sinais de nossa fragilidade adoecida, de humilhada humanidade, em vias de esgotamento e implosão.

 

Nos estudos sobre a fenomenologia de eventos físico-psíquicos de Merleau-Ponty, as lesões e os traumas localizados possuem uma memória relativamente independentes do corpo. Mesmo que haja integral disposição física para o trabalho, interligada à plena capacidade intelectual, ainda assim a lesão emite sinais de advertências pois carrega as experiências do corpo em reminiscências dolorosas.

 

Essa longa tradição disjuntiva e cartesiana que insiste na separabilidade do psíquico e fisiológico chegou ao fim. Mesmo os sofrimentos difusos da existência se dão num corpo que os metaboliza em diferentes sentidos. Tal dispersão de sintomas, tão embaralhados, chega a confundir nossa percepção de adoecimento e nos vemos apenas saudáveis em meio ao caos e escombros das condições materiais e imateriais de trabalho. Esse fenômeno da anosognose foi percebido por Merleau-Ponty em suas pesquisas. Se refere, em especial, a negação contumaz da própria doença, a falta de consciência de sua enfermidade. Acreditamos que essa obsessão pelo desempenho e pela positividade tem sido as razões para identificar, num maior ângulo, a anosognose.

 

Dar visibilidade ao que nos angustia e, sobretudo, aquilo que insiste em ser ocultado de cena, tal como um membro fantasma que fala, grita, coça, geme ainda que desarticulado do físico, mas jamais da experiência que o corpo armazenou. Reflete a consciência do corpo enquanto imagem, sombra e memória. Por essa razão, as variadas formas de sofrimento no ambiente do trabalho existem e clamam por visibilidade. Reaprender a ver o mundo, tal é a tarefa sublime da filosofia, segundo Merleau-Ponty (1999, p. 19). No sentido de que o mundo não é só o que está diante de nossos olhos, mas, sobretudo, em nosso em torno, disperso, disfarçado, recalcado, escondido, camuflado como um Uirapuru que canta incógnito, o som que carrega o enigma da floresta. Novamente, o invisível é o essencial!

 

O corpo é o veículo do ser no mundo, afirma Merleau-Ponty (1999, p.122). Talvez por isso, a parte amputada, invisibilizada no adoecimento orgânico, constitua a metáfora da alma fantasma que insiste em nos perturbar, como se nos cobrasse uma falta, uma dívida psicofísica em sintomas reprimidos e que queremos soterrar vivos em nosso ambiente morto. A experiência da dor e da humilhação não é só instantânea. Ela ecoa e reverbera na forma reativa e que nos impossibilita a leveza e a resiliência.

 

À semelhança dos sintomas depressivos, quem sofre busca se esconder, se isolar, ainda mais quando não se tem uma cultura de compreensão para acolher o trabalhador adoecido. Um divórcio triádico entre o ator, a vítima e seu cenário, já observado por Camus (2016, p.21). Não basta um setor isolado ao tratamento, já que o adoecimento desindividualizou-se. Uma ambivalência que cresce no anonimato e na indiferença. Na dialética do ausente-presente, do corpo fantasma, da dor real e lacerante, muitos professores vagam feito zumbis como se estivessem agonizando entre mortos-vivos. O lugar de intolerância fria os capacita ainda mais a invisibilidade, seja por vergonha, por medo ou rejeição em meio ao cenário de falta de solidariedade ou em constante ameaça de incompreensão. Aquilo que Han trata como modos contemporâneos de enfrentar a dor.

 

Adição de tarefas e atividades extrapolam os muros acadêmicos e invadem o domicílio, agora drasticamente comprometido com a pandemia da covid-19. Dejours acredita que o essencial do trabalho não se revela e hoje, mais do que nunca, é sistematicamente negligenciado em suas buscas por reconhecimento, valorização, prazer, satisfação. Esses aspectos são consideramos como uma importante dimensão simbólica de retribuição pelo trabalho executado e que constitui uma ausência muito sentida. Salários achatados, congelados, espremidos, até mesmo reduzidos em detrimento da dilatação do trabalho, configuram a parte material dessa retribuição largamente omissa e danificada ao trabalho docente.

 

Dejours trata esses efeitos perversos como um tipo de “maldição” que aflige inexoravelmente o trabalho contemporâneo como um todo. Em outra ocasião, o sociólogo francês, Michel Maffesoli, preferiu chamar esse ciclo de violências organizada de “Sociedade Prometéica”, em alusão ao mito grego e ao castigo divino como metáfora à vida operária. Maffesoli revela a face mais cruel do trabalho explorado em sua dialética nefasta, ao revelar que aquilo que ora nos retroalimenta também pode nos destruir, sinalizado pelo movimento vertical do longo dia de trabalho como a subida íngreme de uma montanha, por onde carregando simbolicamente uma rocha acorrentada ao corpo, enquanto abutres e aves de rapina comem – famintas – nossas vísceras. Ao final do trabalho e ao anoitecer, em pleno repouso, as vísceras se reconstituem para serem, logo ao amanhecer, dilaceradas novamente.

 

Essa trama constitui aos docentes um sofrimento silencioso, quase resignado, como se isso lhe desenhasse a trajetória orgulhosa de seu tormento. Aquele que conhece a noite entre leituras e tarefas que se acumulam, tende sintomaticamente, a lidar com a insônia como amiga. Se reconhece como Sísifo agarrado a rocha. Enquanto mantivermos a trama desse silêncio coletivo continuaremos a farsa da dor sem revolta, sem grito de socorro. Talvez, por isso, Albert Camus (2016, p. 124) encerre sua obra com essas palavras: “A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”.

 

Certamente essa perspectiva de caráter mais existencial corresponde às análises de Han sobre sofrimento, tédio, angústia e medo tratados em sua obra mais atual, intitulada Sociedade Paliativa. A Dor Hoje (2021). Aqui, a perspectiva neoliberal se revela bem mais resiliência e consegue metabolizar lesões e até experiências traumáticas em catalisadores para o aumento progressivo do desempenho. Para Han, a experiência coletiva com a dor e sofrimento revela uma urgente hermenêutica para entender a sociedade que vivemos.

 

 

Simulacro de uma Docência Orgulhosamente Adoecida

 

Quando mencionamos na primeira parte de nosso texto a metáfora de egos hiperativos, que Han se refere, está aí perigosamente articulada duas categorias postas em ação, o desempenho e a positividade. Ambos, em níveis de acelerada rotação. Análises já consagradas das ciências humanas e da filosofia já haviam nos preparando para o enfrentamento dos simulacros da sociedade industrial e sociedade disciplinar, desde Marx e Foucault, potencialmente nocivas em sua negatividade. Certamente não imaginávamos que na positividade o tecido social atingiria um status de perversão ainda mais preocupante, pois diante desse novo arranjo estratégico se revelaria turva nossa linha defensiva, já que nos tornaríamos – simultaneamente – vítimas e algozes. É sob o manto atroz da positividade que se aclimatam confortavelmente outros problemas tão perturbadores quanto a ótica da negatividade e das condições materiais.

 

A fábula da modernização atravessou também as Universidades, em sua alegoria de Fausto, com grande ilusão e simulacro desses espaços, como se neles não existissem conflitos de diferentes ordens, o que conduz alguns a uma atitude de perigosa romantização. Essa atitude amplia o mito do progresso, revelando que pelo desempenho esses espaços atingem um nível de qualificação técnica que os capacita conviver num status de ambiente de “excelência” e relativo conforto dessas conquistas objetivas ao atender rapidamente às demandas que lhes são impostas. Cresce a aceitação orgulhosa e sem maiores preocupações de incorporar uma carga extra de trabalho em dezenas de comissões e atividades organizacionais, rigorosamente burocráticas e desgastantes. Essas atribuições não se esgotam na carga horária funcional de trabalho semanal e se realizam também nos domicílios. Trabalho certamente não remunerado e nem valorizado. O prazer e a satisfação são cada vez mais liquefeitos nessas organizações e essa sensação de gozo precoce abre mais espaço para novas obsessões produtivas.

 

Essa mediação ambivalente entre desempenho e frustração tem aprofundado uma psicodinâmica com a dor e o sofrimento. Han recupera a ontologia da dor em Ernest Jünger (1895-1998), em seus relatos como soldado na I Guerra Mundial, na obra Tempestades de Aço, escrito com fascinação e arrebatamento do que o humano é capaz de produzir e suportar de sua própria irracionalidade. Ele próprio teria sugerido que só conhecemos o homem em sua mediação com a dor, já que toda vontade é cega e a dor, míope. Os níveis de estresse crescem em níveis estratosféricos no mesmo diapasão em que avançam técnicas de autoajuda para lidar com o trabalho, em técnicas de mindfulness ou seções de coaching. Em parte, isso explica também a febre por textos de autoajuda e outras terapias superficiais.

 

Nunca em nossa história, destaca Han, potencializamos tanto o córtex cerebral para a atenção plena como na atual sociedade do desempenho. Essa estratégia de focar ao extremo nosso poder de concentração em metas quase diárias, tem produzido resultados alarmantes. Han trata das técnicas de multitasking ou multitarefa como um grande retrocesso civilizacional, já que esse tipo delirante de atenção recoloca a humanidade em estado de selvageria disfarçada: “a multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para sobreviver na vida selvagem” (HAN: 2015, p. 31-32).

 

O lema dessa sociedade do desempenho assume a pretensão inumana de perseverar sempre e nunca falhar, fazendo bem mais com menos tempo possível, como se a punição de Sísifo ocorresse agora além das correntes, além das montanhas. Saíram da mitologia e invadiram as universidades. A rocha, metabolizada em seu corpo, não ensaia mais o peso de sua exaustão na montanha íngreme, mas a leveza orgulhosa de sua produção.

 

Em sua obra Sociedade do Cansaço (2015), Han elabora duas revisões pontuais que exigem de nós uma atualização oportuna na esteira do pensamento hegeliano-marxista e freudiano. A primeira, se refere a famosa “Dialética do Senhor e do Escravo”, colocada em ação por forças radicalmente disjuntivas e antagônicas. No cenário do neoliberalismo atual essas forças antinômicas se relativizaram e se converteram em novas configurações, por onde a exploração coercitiva não constitui mais pela presença física do senhorio, encastelado e imune em sua superioridade. Transição muito semelhante ao que a sociologia de Bauman inaugurou com a metáfora líquida.

 

A antítese das forças originárias de Senhor X Escravo, alcançaram um grau elevado de volatização, dissipando o estado sólido em forças ambivalentes e mais maleáveis. A previsão marxista de “tudo que é sólido, se desmancha no ar”, assume sua configuração mais impactante. Longe de ser o fim da dialética o que se revela é a performance mais contemporânea de suas tensões – sem síntese –, onde simultaneamente operamos outra lógica de opostos e complementares. Somos a um só tempo prisioneiros e livres, vítimas e algozes, Sísifos orgulhosos e felizes.

 

Na perspectiva freudiana, esse ego laborans, parece não encontrar limites, nem obstáculos de mediação. Também a tópica freudiana de polarização ego e superego se realiza, agora, de forma mais cumplice e maleável. Diz Han (2015, p. 43), “O animal laborans pós-moderno é provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se”. Não reagimos com maior frequência aos instintos opressores e basta isso pra nos colocarmos diante de um simulacro de esgotamento e adoecimento ainda maior. O retorno a uma vida mais contemplativa reabilitaria nossa capacidade de buscar a fundo forças mutiladas nas trincheiras do trabalho como forma de resistência e elaboração psíquica.

 

A psicanálise – freudiana, em especial – constituiu-se por meio de algumas categorias históricas mais evidentes em sua origem, como o rigor moralista, a negatividade das proibições, estruturas institucionais repressivas, ordenadoras, claramente disciplinares, moldadas por um aparato religioso e impositivo e de ampla negatividade. Dessas categorias eclodiram um tipo específico de neurose, talvez por essa razão o próprio Freud tenha escolhido transitar numa atmosfera terapêutica bem óbvia para tratar mais adequadamente a sociedade vienense. Seus pacientes eram na grande maioria mulheres neuróticas, reprimidas, judias e de classe média (PETER GAY, 1990).

 

Han, submete essas categorias freudianas a uma releitura pontual, trazendo aos estratagemas mais atuais da sociedade neoliberal um revisionismo cultural necessário, já que a sociedade hoje se move para além de negatividades e proibições, constituindo-se em outros arranjos neuróticos, mais perigosos e insidiosos, orquestrados por um estilo Laissez-Faire, muito bem aclimatado ao liberalismo econômico e suas inovações. Essa sensação de pseudo liberalidade se mascara em sintomas mais agressivos que aqueles de sociedades autoritárias.

 

Nesse novo fluxo psíquico das neuroses se revela uma disposição subjetiva diferente, mais afeita apenas ao enfrentamento das repressões em sua modalidade mais clássica e convencional. Sobre esse aspecto, afirma Han (2015, p. 80): “O inconsciente freudiano não é uma configuração atemporal. É um produto da sociedade disciplinar repressiva, da qual nós estamos nos afastando cada vez mais”. Bem longe de ser o fim da psicanálise, o que se configura é um reordenamento de novas performances repressivas e coercitivas, da qual ainda não nos despertamos com maior rigor defensivo e interpretativo. Longe de serem vistas como estruturas compulsórias muitas demandas de trabalho ainda são encaradas por muitos como gratificantes e nos colocamos sempre dispostos e receptivos em sua pseudo forma de liberalidade e desempenho propositivo. O cenário se revela ainda mais preocupante, pois uma parte significativamente grande de trabalhadores da educação se mostram orgulhosamente adoecidos e narcisicamente explorados em sua própria morada egóica, que acolhe – simultaneamente – as marcas de uma vaidade desidiosa, mesclada de enaltecimento e torpor, alta performance e dilaceramento existencial. Ambos, bem ambientados num mundo de ampla perturbação existencial e “carência do ser” (HAN: 2015, p. 46).

 

Uma vida sem pausas, descansos, contemplações ou interrupções gradativas e pontuais equivale ao automatismo insano de uma res machina. Essa configuração nociva a sociedade e ao humano, Han (2015, p. 56) chama de “desempenho autista”. É preciso reabilitar outra potência esquecida de nossa grande razão que é o corpo (Nietzsche), potência para o não-fazer e que nada tem a ver com impotência, segundo a leitura de Han sobre Nietzsche. A potência da positividade se vê intrinsecamente ligada a algo para sua realização contumaz e imediata. A potência negativa, pelo contrário, se constitui pela força de ação do espírito que nos faz parar, desacelerar e retroalimentar em outras direções da existência. A potência negativa que visa a contemplação estética ou metafísica sem o peso da hiperatividade e do produtivismo a que estamos condicionados nos remete, também, a urgência de uma autoavaliação de antidoping, sobretudo para que se revele os níveis camuflados de entorpecimento e esgotamento a que estamos silenciosamente submetidos. Aqui, a análise diagnóstica de Han nos conduz a sua maior advertência metafórica: “O excesso da elevação do desempenho leva a um enfarto da alma” (HAN: 2015, p. 71).

 

Esses novos horizontes patológicos, somados à psicodinâmica das organizações do trabalho na atualidade, têm exigido de nós pesquisadores do tema importantes zonas de fuga interdisciplinares, em novos arranjos epistêmicos para lidar melhor com sua complexidade. Desse esforço cognitivo, o sociólogo Richard Sennett, tem produzido importantes investigações com ressonâncias na psicanálise, na filosofia e na história. Em sua abra O Declínio do Homem Público (1999), tem denunciado os estratagemas de um comportamento intimista que penetra no tecido social, produzindo microtiranias da intimidade, confundindo público e privado. Sennett chama esses distúrbios de perturbações narcísicas que tem gerado individualismos extremos na busca por gratificações egóicas, onde pessoas mergulham fundo em sua interioridade e usam critérios pessoais para lidar com assuntos públicos. A perturbação narcísica corresponde ao binômio trabalho-adoecimento a uma significativa negação de Eros no tecido das relações humanas.

 

Diferentemente de Sennett, o autor da Sociedade do Cansaço, tem revelado que essa gratificação egóica nunca chegará à via de fatos no processo laboral. A ilusão do desempenho tem projetado um homem sem revolta no sentido de Albert Camus. Constitui-se de uma miragem, um novo tipo de ilusão egóica intimamente produzida no tecido organizacional do neoliberalismo. É onde o trabalhador se vê fadado a uma busca contínua, sem repouso, sem gratificação e ainda assim acreditando que ao final da montanha íngreme haverá o paraíso.

 

No mito de Sísifo a tragédia deve-se a consciência desse herói condenado ao seu implacável absurdo, sem qualquer fonte de idealismo ou ilusão. No entanto, o novo Sísifo pós-moderno, revestido em novas roupagens ideológicas e narcísicas, inventa um plano de ilusão que justifique o absurdo do trabalho por uma fetichização compensatória, que um dia o trabalho proverá. A essa configuração idealista do trabalho que acredita realizar-se na busca do desempenho como essência e melhoramento das produções e relações humanas é, em larga escala, uma nova ordem de base fundamentalista, bem aclimatada pela religião do Capital.

 

Esse simulacro tem ocultado a percepção do sofrimento e do adoecimento na cena das organizações laborais, atenuando o peso de negatividade e do absurdo, para assumir o trabalho como uma paixão dilacerante, revelada agora pela face oposta de positividade, como a dupla face mitológica do deus Jano. Em duas importantes metáforas, Camus (2016, p. 33) se refere ao “sono do coração”, um estado de dormência e sedação de quem não despertou para o absurdo que se descortina na linha do horizonte. Esse homem laboral ainda entorpecido e narcisista se revela afeiçoado ao desempenho cotidiano, em sua “paz envenenada”. Atribui sentido de existência à rocha que orgulhosamente carrega.

 

 

**Harald é professor de Filosofia e Educação, da Faculdade de Educação (Faced) da Ufam.



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