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  18/11/2021 - por José Alcimar de Oliveira





 

De fato, assim me parece agora aquele longo tempo de doença: descobri a vida e a mim mesmo como que de novo, saboreei todas as boas e mesmo pequenas coisas, como outros não as teriam sabido saborear – fiz da minha vontade de saúde, de vida, a minha filosofia... (Nietzsche).

 

               01. Instituído pela UNESCO, celebra-se, a cada terceira quinta-feira do mês de novembro, o Dia Mundial da Filosofia. É sempre  da ordem da celebração o instinto festivo. Nietzsche, filósofo que cultivava o amanhecer, associava o pensar a uma festa. Epicuro, por sua vez, associava a sabedoria a um jardim. Um jardim cosmopolita, que poderia ser frequentado por crianças, mulheres, escravos, estrangeiros, a despeito das restrições de extração socrática, platônica e aristotélica. Em diálogo com Epicuro e Nietzsche, com a sábia mediação de Protágoras, ousaria propor que o Dia Mundial da Filosofia se convertesse em Dia Mundial da Festa do Jardim do Pensamento. Se para Bachelard a Ciência é a expressão estética da inteligência, por que a Filosofia não poderia se definir como manifestação estética do pensamento? Manifestação festiva, inclusive.

 

               02. Também instituído UNESCO, celebra-se no dia 24 de novembro o Dia Mundial da Ciência. Em sua raiz latina, Ciência procede de scientia, que remete à atitude de saber, conhecimento, o que não significa necessariamente sabedoria. Sabedoria se diz sapientia em latim e tem a ver com prudência, circunspecção, um tipo de estética do gosto, porque há identificação entre saber e sabor. No grego, sabedoria se diz sophia, e o que cultiva o jardim da sabedoria é o philosophos, em atitude de sábia tensão com quem se proclama sábio, sophos. Dessa forma, o filósofo não é, necessariamente, nem cientista nem sábio. Sua atitude, seu modo de viver, estaria mais próximo da figura do jardineiro, que cuida de todas as flores do jardim, cujo dia é celebrado a cada 15 de dezembro. O filosofar é (também)  uma jardinagem epicurista.

 

               03. Sob a presidência da hegemônica razão instrumental capitalista, a Ciência se converteu em técnica e separou-se da filosofia, a ponto mesmo de lhe dedicar ódio. Ortega y Gasset refere-se à técnica contemporânea como resultado da copulação entre o modo de produção capitalista e a ciência experimental. Mas nem tudo é festa para a Filosofia, sobretudo quando em grande medida seu cultivo tem-se convertido em academicismo apartado do cotidiano concreto da vida. Parece acomodar-se melhor na assepsia de cômodas prateleiras e preferir a improdutiva erudição academicista à atitude de embrenhar-se nas contradições da vida severina. É cada vez mais rarefeita a figura do Filósofo como intelectual orgânico das classes subalternizadas. A erudição especializada pontifica.  Segundo Nietzsche, o erudito dedica-se a “revirar” livros. Se for filólogo, “uns duzentos por dia”, em “cálculo modesto”. Desapareceu o Filósofo como um irredento revirador da vida.               

 

               04. Em duas obras, O Livro do Filósofo e Ecce homo: como alguém se torna o que é, Nietzsche associa o cultivo da filosofia à afirmação dos afetos que potencializam a vida, o que não deve ser confundido com a ideologia da compulsão pela felicidade. O filósofo seria uma espécie de “médico da civilização”. Num célebre texto de 1930, O mal-estar na cultura, Freud igualmente se ocupa do caráter clínico da filosofia sob a forma de psicanálise da vida social num momento em que a Europa começava a se envenenar pela ideologia do nazismo e se deixava contaminar pela vontade de morte e de destruição. Leitor de Nietzsche, Freud, ele mesmo ao escrever esta obra vinha de se recuperar de longo adoecimento. Tal como Nietzsche, Freud buscava afirmar a vontade de vida numa estrutura social adoecida e sob pulsão tanática. Nada a ver com o Brasil de 2021.

 

               05. Quanto a mim, se há um filósofo cujo estilo de vida identifica-se a um   artesanato do bem-viver e mereceria o título de patrono desta data, não poderia ser outro senão Epicuro. Ao contrário de Sócrates, que pontifica a data comemorativa, em Epicuro a vontade de vida tem precedência ontológica sobre a vontade de verdade. Por força de tal inclinação materialista, que submetia o conceito ao caminho que busca a saúde da alma corporalmente situada, Epicuro foi esconjurado pela teologia cristã. Quem se dedicasse ao cultivo do seu belo e cosmopolita Jardim logo era vítima da injúria, carimbado como epicuri de grege porcum (porco do rebanho de Epicuro). Mas existe mamífero não humano mais próximo ao homem do que o porco? Churchill reconhece que os cães se julgam inferiores a nós, os gatos se consideram superiores e os porcos iguais ao que somos.

 

               06. Devemos a Epicuro, sobre quem Marx escreveu sua tese de doutorado (na verdade, à época, um Trabalho de Conclusão de Curso que o habilitava à docência, e que trabalho!) o mais belo elogio já feito ao cultivo da Filosofia: “nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz”. Como é possível cultivar e manter a saúde da alma em tempos de manifesto ódio ao pensamento? Todo ódio à Cultura, ao Conhecimento, à Filosofia e à Ciência é, na verdade, auto-ódio. Ao sublinhar o valor da formação diante da política do ódio promovida pelo nazismo, Adorno reconhecia que a cultura existe para que não nos acotovelemos uns aos outros.  

 

               07. O cultivo da Filosofia como “médico da civilização”, tem algo de terapêutica cognitiva – como a formulada pelo tetraphármakon de Epicuro –,   de promoção da sanidade, para o quanto possível evitar que a vida social, em qualquer tempo e espaço, venha a sucumbir ao poder daqueles que, segundo Nietzsche, sequer podem ser contados “entre os homens” por serem “refugo da humanidade, abortos de doença e instintos vingativos: são monstros nefastos, no fundo infaustos, que da vida se vingam... Quero ser o oposto disso: meu privilégio está em possuir a finura suprema para os sinais de instintos sãos. Falta-me qualquer traço doentio; mesmo em tempo de severa doença não me tornei doente; em vão procure-se em meu ser um traço de fanatismo”. Se a verdadeira Filosofia é reaprendizagem do mundo, conforme Merleau-Ponty, o seu cultivo não pode prescindir das sadias suspeições que Nietzsche, Marx e Freud levantaram contra as pretensões positivadas por qualquer modelo de soberania da razão. Seguramente inspirado nestes mestres é que Heidegger atribuía à Filosofia a tarefa nada fácil de se postar como “guarda da ratio”.

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 18 de novembro do ano do morticínio de 2021 e no Dia Mundial da Filosofia.



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