É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são filósofos (Antonio Gramsci).
01. Nesse 16 de agosto de 2021 comemoramos o dia de quem cultiva a Filosofia. Com modificações e redução textual, reproduzo artigo publicado em 2020, nesta mesma data. Mais do que comemorar o dia, importa manter a vigilância do pensamento nesses tempos de desinibido fascismo cognitivo. Para ser fiel à epígrafe acima, devemos incluir com igual estatuto de filósofas e filósofos todas e todos que cultivam a sabedoria, do jardineiro ao pós-doutor, do pajé indígena, do pai ou mãe de santo, trovador e trovadora do povo, cordelista, benzedora e benzedor, até aqueles que foram convidados a proferir sua aula magna no renomado Collége de France, como Foucault e Barthes. E as mulheres? Para pensar em três mulheres de militância prática e teórica, nesse Brasil que parece naturalizar o ódio ao pensamento, trazemos à memória Carolina Maria de Jesus, Elizabeth Teixeira e Marilena de Souza Chauí (as duas últimas ainda vivas).
02. A Filosofia é a democracia do pensamento. O requisito básico do filósofo é o cultivo da sabedoria, seja por meio de conceitos acadêmicos, seja pelo manejo sábio das palavras de quem, mesmo diante da interdição de entrar nos templos acadêmicos, sem acesso às mediações da cultura letrada, exercita de modo altivo a arte de falar e de narrar numa sabedoria construída no chão da vida e passada na casca do alho, como diz o saber do povo. Estas e estes são mestres da narração e da arte da tradição oral. Mas nas Academias dominam os funcionários da ciência. Estão mais para letrados do que propriamente intelectuais e, dentre estes, poucos sábios, e menos ainda intelectuais das classes subalternas. O que há, em excesso, são intelectuais subalternos das classes orgânicas. Milton Santos, a propósito dessa contradição (explicável), já denunciava que no Brasil aumenta o número de letrados e diminui o número de intelectuais.
03. Não cabe o reconhecimento de filósofo a quem impede ou trava a democracia do pensamento. A quem impede o acesso às letras. A quem conjura o iluminismo. Aqui, peço que leiam com atenção as sábias palavras do incontornável Immanuel Kant (1724-1804), reproduzidas ipsis litteris: “Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento [Aufklärung]. Isto seria um crime contra a natureza humana (grifo nosso), cuja determinação original consiste precisamente neste avanço”. Por mim, não consideraria exagero nenhum que esta declaração kantiana se espalhasse nos muros dos becos, das ruas e nas praças, não na forma de outdoors, mas de panfletos e intervenções artísticas e emancipatórias.
04. Sem filosofia não há democracia. Não falo de democracia burguesa, nem da justiça burguesa, sempre seletiva e cega para o povo. Democracia é poder do povo, povo livre e sem medo. Do povo-multidão, de todas as cores e credos. Da liberdade de pensar. Bem o diz Espinosa no Tratado Político: “Porque a multidão livre conduz-se mais pela esperança que pelo medo, ao passo que uma multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte”. São realidades excludentes: de um lado, oficialmente, quase 600 mil mortes e, de outro, uma democracia discursiva e vazia. 600 mil mortes indicam necrocracia. Viver sob o poder da morte. Da política da morte. Da necropolítica, segundo Achille Mbembe. Democracia é política a serviço da vida.
05. Se filosofia é a democracia do pensamento, outra coisa ela não pode ser senão saber do povo livre e sem medo. Santo Agostinho, esse monumento do saber teológico e filosófico da Antiguidade Cristã, afirma que a sabedoria é que é, portanto, a medida da alma (modus ergo animi sapientia est). Essa medida, esse modo de ser, não se confunde com o saber acadêmico. É saber da vida, saber viver. Conviver. Não excluir. Não discriminar. A filosofia não pode vicejar fora do cultivo do canteiro democrático, do jardim de mil plantas e flores. Habermas, hoje aos 92, nos apresenta esta bela equação filosófica: “A filosofia e a democracia não só partilham as mesmas origens históricas como também, de certo modo, dependem uma da outra”. No primeiro período do Curso de Filosofia na Universidade Federal do Amazonas, em 1980, aprendi que a Filosofia é filha da cidade, da pólis. Mas é na cidade também, sobretudo quando a cidade é governada por malfeitores, que mais se conspira contra a filosofia. Isso não se iniciou hoje. Voltem a Sócrates e sua condenação à morte na, assim propalada, democracia ateniense.
06. Hoje, no prevalente regime da semiformação ou semicultura (conforme o fecundo conceito do velho Adorno, conceito mais fecundo hoje do que nos tempos do autor da Dialética Negativa), virou regra acusar de esquerdopata, esquerdista, comunista, quem se recusa a rezar pelo catecismo da mediocridade cognitiva (ou ausência de pensamento) que infesta as redes (pouco) sociais. Quanto a mim, muito agradeço à Ave de Minerva pelo trabalho de desinfestar minhas redes, inclusive a de dormir, de ler e de pensar. Além do mais, a Ave generosa de Minerva me faculta excelentes filtros cognitivos e em vários modelos: de Heráclito a Paulo Arantes, de Epicuro a Dom Pedro Casaldáliga, de Agostinho a Carolina Maria de Jesus, de Pedro Abelardo a Karl Marx, de Paulo Apostolo a Alain Badiou, de Epicuro a Elizabeth Teixeira, de Platão a Espinosa, de Jesus de Nazaré a Lênin, de Aristóteles a Kant, de Parmênides a Hegel, do Filósofo Operário Joseph Dietzgen a Marilena Chauí. E são muitos os fecundos afluentes do caudaloso rio da Filosofia.
07. Para ficar apenas em sete parágrafos, concluo chamando à ágora das ideias mais três mestres do pensamento filosófico: Epicuro, Karl Jaspers e Paulo Freire. O primeiro, Epicuro, foi tema do TCC de Karl Marx em Filosofia. O segundo, Karl Jaspers – e preventivamente adianto que ele está isento do “periculoso pensamento de esquerda”, bem como da “terrível ameaça do marxismo cultural” – é autor de uma conhecida, ao menos nos meios filosóficos, Introdução ao pensamento filosófico, apresentada inicialmente na forma de comunicações radiofónicas há mais de 50 anos na Alemanha. E o terceiro, Paulo Freire, cujo centenário de nascimento celebramos neste 2021, é o mais conhecido e mundialmente reconhecido filósofo da educação brasileiro.
7.1. Epicuro: “Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz”. É o mais belo elogio à filosofia já escrito.
7.2. Karl Jaspers: “Muitos políticos veem facilitado o seu nefasto trabalho pela ausência de filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam uma inteligência de rebanho”. Karl Jaspers, professor de uma desconhecida aluna chamada Hannah Arendt, nunca esteve no Brasil e publicou esse texto em 1965.
7.3. Paulo Freire: “A educação é um ato de conhecimento. Uma aproximação crítica da realidade”. “A prática de pensar a prática é a melhor forma de pensar corretamente”. “Certa vez, em conversa com o autor, um médico, dr. Orlando Aguirre, diretor da Faculdade de Medicina de uma universidade cubana, disse: ‘A revolução implica três ‘P’ – Palavra, Povo e Pólvora. A explosão, continuou, aclara a visualização que tem o povo de sua situação concreta, em busca, na ação, de sua libertação’. Pareceu-nos interessante observar, durante a conversação, como este médico revolucionário insistia na palavra, no sentido em que a tomamos neste ensaio (A Pedagogia do Oprimido, no caso). Isto é, palavra como ação e reflexão – palavra como práxis”. No Brasil de 2021, Paulo Freire, que nos deixou em 1997, tem sido vítima de um segundo e ainda mais perverso exílio.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical das e dos docentes da UFAM e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 16 dias de agosto do ano do morticínio de 2021.
**Artigo publicado originalmente no dia 16 de agosto de 2021.
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