Assim que (Jesus) desembarcou, viu uma grande multidão e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como ovelhas sem pastor. E COMEÇOU A ENSINAR-LHE MUITAS COISAS (grifo nosso) (Mc 6,34).
01. Assim como Alain Badiou se refere a Paulo como o Lênin de Jesus, e a Jesus como o Marx de Paulo, por minha condição de teólogo sem cátedra e de defensor de uma exegese não afinada aos cânones do dogmatismo, concedo-me o direito de afirmar que o evangelista Marcos é o Gramsci de Jesus de Nazaré. Gramsci se referia a Marx como o filósofo da práxis. Marcos é o teólogo da práxis. Escreveu o evangelho do movimento, da ação. É dele o mais curto dos quatro evangelhos considerados canônicos: apenas 16 capítulos, em 27 páginas, na versão em português da Bíblia de Jerusalém, aí incluído um rico aparato crítico. Mas como o Nazareno sempre excederá os limites de uma definição, a natureza de sua práxis (palavra e ação) pode, sob medida dialética, também ser pensada como protoanarquista, num devir afinado às figuras de Bakunin e Kropotkin.
02. Na epígrafe acima, reproduzi o último versículo da leitura do texto (Mc 6,30-34) deste 16º Domingo Comum, 18 de julho de 2021, lido em todas as igrejas católicas do mundo. Nos versículos seguintes encontramos o relado da primeira multiplicação dos pães. Depois de muitas coisas ensinadas à multidão (entregue a si mesma e desorganizada como “ovelhas sem pastor”), os discípulos se dirigem a Jesus e o orientam a despedi-los, pois já era tarde, estavam num lugar deserto e todos estavam famintos. Jesus reprova a atitude dos discípulos e ordena: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (6, 37). O relato do evangelista Marcos é o que devota mais atenção à humanidade de Jesus de Nazaré: numa hora está tomado de cansaço, noutra dorme, se entristece, sofre, repreende. Nunca tem tempo para si e está sempre cercado pela multidão.
03. Jesus havia lido, de forma antecipada, num poema de Brecht que “a justiça é o pão do povo”. Leitor também dos Profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel, ele se recusa a proceder como os dirigentes religiosos e a elite política de Israel, que há séculos se dedicavam ao trabalho sujo de dispersar e extraviar o seu povo. Ele e os discípulos organizam o povo em grupos e promovem a partilha da palavra e do pão. A prática de Jesus é outra. Evangelho é saída, devir. Doutrina é prisão, fatalismo. Como sabiamente nos ensina o jovem sacerdote, teólogo e historiador belga de 90 anos, Eduardo Hoornaert, no Brasil desde 1958, o movimento iniciado por Jesus de Nazaré não se deixou capturar pela teleologia do poder, nem religioso, nem político. Ele continuamente confronta e sustenta o conflito com os poderes político e religioso. A leitura de Marcos põe em relevo a fé vivida pelo Nazareno num ambiente sempre hostil, de contestação, de rejeição.
04. Num texto recentemente publicado em seu blog http://www.eduardohoornaert.blogspot.com, intitulado com aspas “O Papa Francisco não resolve nada”, Hoornaert nos dá uma aula sobre o movimento anarquista e faz lúcidas e heterodoxas aproximações entre Jesus de Nazaré, o Papa Francisco, o cinismo de Diógenes e os anarquistas Bakunin e Kropotkin. As atitudes de Jesus de Nazaré são sugestivas de um anarquismo embrionário. O Galileu teria saudado com alegria a experiência da Comuna de Paris, de 1871, entusiasticamente vista por Bakunin como “uma negação ousada e franca do Estado”. Ao insurgir-se contra o regime da posse e do acúmulo de bens (que será naturalizado pelo sistema do capital), Jesus de Nazaré, segundo o relato do evangelista Marcos, ordena aos apóstolos que em seu trabalho militante “não levassem coisa alguma para o caminho, senão somente um bordão; nem pão, nem mochila, nem dinheiro no cinto; como calçado, unicamente sandálias, e que se não revestissem de duas túnicas” (6,8-9). Como observa o Mouro de Trier: a propriedade privada torna as pessoas “cretinas e unilaterais”.
05. Só aparentemente, conforme Hoornaert, “o Papa Francisco dá a impressão de desconhecer tão impressionante painel histórico. Simplesmente deixa cair uma frase que desmancha tudo: ‘não se deve dar preferência a espaços de poder’ (Exortação Apostólica Amores Laetitia, 2016). Trata-se de incentivar processos, dinamizar a ação, colocar a Igreja em marcha. Abandonar a ideia da centralidade da Igreja na construção da sociedade, militar na construção da justiça e da misericórdia, do encontro e do diálogo sem se ocupar com espaços de poder? Um programa abrangente, uma convocação para além de clausuras culturais e confessionais. Todos são convocados: crentes e descrentes, católicos e ateus, cristãos e islamitas, comunistas e liberais, chineses e ocidentais”. Até quando a Mãe Terra ou, segundo Espinosa, Deus sive Natura, suportará a cultura do ódio, dos nacionalismos e da entropia do atual paradigma ciilizatório?
06. Se considerado como um protoanarquista, Jesus de Nazaré estará na classificação de revolucionário ineficaz conforme definição do historiador marxista Eric Hobsbawm: “A ineficácia das atividades revolucionárias anarquistas poderia ser amplamente documentada em todos os países onde essa ideologia teve um papel importante na vida política”. Penso que o evangelista Marcos discordaria da avaliação de Hobsbawm sobre a ineficácia da ação revolucionária do protoanarquista Jesus de Nazaré. Jesus de Nazaré não apostou na eficácia de uma missão modulada pelo tempo curto, que cria expectativas de resultados imediatos. Fez o devir da paciência do conceito de Hegel na Alemanha temperada para a paciência da ação na tostada pátria palestinense. Não cedeu à bem-intencionada, mas apressada revolta do zelotismo e dos movimentos revolucionários de seu tempo. Optou por fazer uma revolução a pé, de casa em casa, de aldeia em aldeia. Não tinha pressa, combinava experiência de vida, intuição e leitura de mundo. Sem leitura nenhuma de Freud ou Lacan, “não necessitava que alguém lhe desse testemunho do homem, pois ele sabia o que havia no homem” (Jo 2,25). O mal e o bem se dissimulavam com surpreendente eficácia, como no Brasil de 2021, em que poder e bom senso seguem em regime de apartação.
07. O seu movimento (e vivamente recomendo o excelente livro de Hoornaert, O movimento de Jesus) se inicia por surpreender o seu círculo familiar na pequena, pobre e muito mal afamada cidadezinha de Nazaré: “Quando chegou o dia de sábado, começou a ensinar na sinagoga. Muitos o ouviam e, tomados de admiração (afinal nunca cursou a hoje afamada Escola Bíblica de Jerusalém), diziam: donde lhe vem isso? Que sabedoria é essa que lhe foi dada, e como se operam por suas mãos tão grandes milagres? Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria, o irmão de Tiago, de José, de Judas, e de Simão? Não vivem aqui entre nós também suas irmãs? ” (Mc 6, 2-3). Jesus admirava-se da desconfiança dos seus conterrâneos, mas não se intimidava “e, ensinando, percorria as aldeias circunvizinhas” (Mc 6,8).
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 18 dias de julho do ano do morticínio de 2021.
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