Fiquei realmente muito animado com essa revelação – a sombra que pode ir mais rápido que a luz! – mas também bastante decepcionado. Em minha resistência à aceleração generalizada do mundo, contava com os físicos para que lhe colocassem uma barreia intransponível. Finalmente, a natureza é como as rodovias: os limites de velocidade fixados são facilmente burlados. As leis físicas não são mais respeitadas que qualquer outra lei! (Jean-Marc Lévy-Leblond, A velocidade da sombra).
01. Dentre os quatro ídolos apontados por Francis Bacon (1561-1626), célebre filósofo empirista inglês, como os obstáculos epistemológicos que turvam o intelecto humano contam-se os ídolos do teatro (idola theatri), que se referem às representações falseadas da realidade. De Bacon aos nossos dias esse processo de falsificação da realidade aprimorou-se como um mecanismo político de mistificação (ou mitificação) das consciências. Por força das tecnologias mediáticas, a velocidade das imagens e dos textos (em geral carentes de reflexão e a ela aversivos), em segundos viralizados, como se diz hoje, inclui a todos no circuito da falsificação do real e em tempo real. Tudo obedece ao império da imagem. E a imagem, quanto mais interdita o conceito, mais fideliza consumidores. Afinal, refletir dá trabalho.
02. Que importa a realidade? Ou seu penoso e crítico trabalho de objetivação? O mundo agora é o que vemos ou cabe na tela. Não importa se o que vemos foi modulado pela heteronomia do ver. Apareceu na tela é verdade. Borrou-se a fronteira entre aparência e essência. A aparência é a essência do processo e palpável. É necessário pegar o mal com a mão. Ver com os olhos. Nem o mal metafísico, porque isso é artimanha de teólogo (ou filósofo), nem o mal objetivado pelo materialismo histórico e dialético, que introduz relações sociais no que aparece sob o estatuto do mal. O mal tem que ser personificado, revestido de plasticidade, tocável. A religiosidade medieval, num mundo de insignificante letramento, a fé vinha pelo medo e pelo temor. Alfabetizava-se pelas imagens e pelo recurso ao obscurantismo. O Brasil do século XXI está mais próximo da cristandade medieval do que do catolicismo romanizado do Vaticano.
03. Desde 28 de junho de 2021, com a prisão e morte de Lázaro, há uma sensação de que a paz e a segurança voltaram a todos os lares dos brasileiros de bem. Aprisionado e contido, o mal foi exposto ao espetáculo mediático. É sempre um alívio ver o mal sob controle, carregado numa viatura. Como escrevo na condição de teólogo sem cátedra, já não sei se ao caso Lázaro é aplicável a teoria do mal menor. Mas é inegável, se consciente ou não dessa teoria, a aplicação ideológica do mal menor. No caso Lázaro, preservou-se o mal maior, a serviço do qual ele sobrevivia, para restar salva e protegida pelo Estado burguês a indústria do latifúndio, da grilagem, da especulação, que necessita de um exército de mal menor feito de jagunços de nome Lázaro. Para recorrer a Karel Kosik, estamos diante do modelo acabado da dialética da pseudoconcreticidade. Ou da impossível materialização da coisa-em-si kantiana. Com Lázaro a justiça prendeu o mal-em-si. Seguramente será proibida ou desautorizada a leitura do relato evangélico sobre a ressurreição de Lázaro. Mas Lázaros, no Brasil, nunca estarão em falta.
04. Continuará incólume a mais regressiva e cruel realidade social, ao abrigo das sombras produzidas pela burguesia genocida. Lázaro é um instrumento descartável e facilmente substituível. Porque o padrão capitalista de produção, consumo e exploração dos trabalhadores é presidido pela lógica férrea da obsolescência programada: descarte e substituição. Nesse teatro abominável e avesso à estética, Lázaro entrou e saiu de cena numa peça dos horrores e sob direção de uma burguesia ávida de sangue e avessa à justiça. Com Lázaro a espetacularização promovida pelas corporações mediáticas burguesas cumpriu religiosamente seu papel de promover medo e insegurança aos desavisados, reforçar o apelo ideológico da população armada e segura e legitimar o heroísmo patrioteiro do aparato policial. O Brasil pode perder o rumo, mas sempre vai garantir a sensação de segurança.
05. Sensação é a palavra mágica. No período do engodo pós-moderno o que vale é criar a sensação de. A sensação é da lógica do imediato e dispensa conceitos. É uma cognição epidérmica. É pré-cartesiana, porque torna ocioso o pensamento. Nada de res cogitans (substância pensante). Ser é sentir. E pensar impede o sentir. Mas, parafraseando Brecht, é pena que a palavra pão alimente tão pouco, inclusive o pão sem justiça. Porque, ainda com Brecht, “a justiça é o pão do povo”. Três princípios me referenciam o pensar e o agir: 1) a precedência ontológica do real sobre o legal; 2) o real, natural ou social, é regido pela contradição; 3) a verdade é o modo de ser do real. É impossível subtrair a contradição ao real, sobretudo ao real das relações sociais. Por mais artificiosos que sejam os simulacros que tentam velar o mundo do ser social, a força ontológica da contradição cedo ou tarde irrompe e desfaz as representações falseadas do real. Mas demora.
06. É uma verdade triste, mas verdade: continuamos na sociedade do espetáculo (Guy Debord, 1967) ou na Sociedade excitada (Christoph Türcke, 2010). Dois textos que nos ajudam (os que gostam de ler e de se deter na artesania de conceitos enraizados na práxis) a compreender a miséria cognitiva do mundo e, sobretudo, aquela em que o Brasil submerge. Hoje o movimento frenético da postagem compulsiva de imagens reforça e revela o estado social de progressiva imbecilização do mundo nesses tempos que abrem o século XXI. José Paulo Netto chama a isso de decadência ideológica. Em Marx: miséria da filosofia. Num e noutro, um estado ideológico e venal de desativação dos conceitos. Tempos de fascismo cognitivo, que se apoia no ódio organizado como política. Edgar Morin, que no próximo 08 de julho de 2021 deverá entrar na lista dos filósofos centenários, chama a isso de “barbárie do pensamento”.
07. Consolida-se uma espécie de inteligência visual regida por sofisticados e eficientes aparatos mediáticos que operam uma universal heteronomia cognitiva. Vou resumir para facilitar a compreensão: é quando o ver com o olhar do outro substitui o pensar. Pensar dá trabalho. A única pessoa a afirmar que "pensar é uma festa" é o iconoclasta e saudável Nietzsche. Mas o conceito é trabalhoso e exige paciência. Ao contrário da imagem, que excita, opera pelo imediatismo e arrebanha seguidores. Por isso o velho Hegel, cuja vida se moveu pelas trilhas do conceito, assegura que a “ave de Minerva só alça voo ao cair da tarde”. A filosofia não tem pressa, nem pode abdicar do conceito. A filosofia não tem lugar de mercado. Filha da cidade, resiste em precário abrigo, inclusive nas instituições acadêmicas. A democracia burguesa e seletiva, a prefere nos salões, ritualizada e domesticada. Mas seu verdadeiro espaço é o da democracia proletária, o único que lhe garante força material.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 29 dias de junho do ano (ainda) pandêmico de 2021.
Foto: Ed Alves/Reprodução
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