Documento sem título






     Artigos




  18/05/2021 - por José Alcimar de Oliveira





 

Um fator pouco considerado na objetivação do que é a tragédia da educação brasileira é a negação política, por parte de nossa contente autocracia burguesa, das consequências sociais dessa tragédia. Durmeval Trigueiro Mendes, pensador pouco frequentado, senão hostilizado, pelos tecnocratas da educação, ao analisar o processo político da educação brasileira cumpriu sem meias medidas com as exigências do pensar filosófico na acepção do velho Horkheimer: “esforço consciente para unir todo o nosso conhecimento e penetrar dentro de uma estrutura linguística em que as coisas são chamadas pelos seus nomes corretos”. O verdadeiro referencial da luta contra o poder ideológico do discurso não está na lógica, como querem muitos analistas refinados, mas na ontologia social, na práxis. Hoje, o Brasil parece refém do mundo paralelo, emanado desde o poder, e permanentemente reativado no mundo mediático, tanto corporativo quanto das redes sociais.

 

Durmeval Trigueiro foi certeiro ao identificar o nó nunca desatado da política educacional brasileira e chamou as coisas “pelos seus nomes corretos” (conforme Horkheimer), num ensaio intitulado Existe uma filosofia da educação brasileira? Tentativa e esboço, escrito há 40 anos: “A nossa observação é que, a despeito da retórica, o Estado não quer, nem nunca quis, resolver o problema educacional brasileiro”. Afinal, para a didática magna do Estado capitalista basta garantir ao povo uma educação a base do ritualismo meia-boca, sem processo e afeita à comemoração de resultados vazios de finalidade. Na sociedade da eficácia, do retorno imediato, as coisas podem surgir prontas, sem devir, por meio do cancelamento da dialética, com seu penoso processo. Por que investir em educação, em formação de professores, em construção de escolas, se tudo pode ser virtualizado, espaço, tempo e processos? Com boa gerência, barateiam-se custos, otimizam-se resultados e o trabalho educativo pode migrar para o ensino remoto com eficiência e rapidez. A pandemia de Covid-19 abriu muitos caminhos. O inferno é bem ali.

 

No dia 29 de março de 2021, a Universidade Federal do Amazonas retomou suas atividades de ensino por meio de aulas remotas. Por força da epidemia de Covid-19, agravada pela negligência governamental nos níveis federal, estadual e municipal, é a modalidade de ensino que nos resta para manter a difícil regularidade do calendário acadêmico. É preciso dizer: o ensino é remoto, não a vida. E a condição remota do ensino afeta direta e existencialmente a vida pessoal e familiar de quem ensina, porque ninguém vive remotamente. Por traz de belas e sonoras palavras – afinal falar em home office é muito mais refinado do que trabalho caseiro – há um ocultamento de muita miséria humana e tragédia social. Há um deslumbramento tecnológico, que beira o fetiche, quanto às vantagens e possibilidades vendidas pelos mercadores do ensino. A remoticidade no ensino nos permite fazer coisas nunca imaginadas por sua modalidade presencial, por muitos já tida como obsoleta.

 

Antes de discutir as diferenças entre ensino (aula) remoto e ensino a distância, e afinal ambos ocorrem a distância, inclusive à distância da educação, é necessário recuperar o sentido ontológico da educação, algo que pouco importa à consciência dos tecnocratas do ensino, sempre muito entusiasmados pelas ditas tecnologias educacionais. No máximo, chamemos de tecnologias de ensino. Nem tudo é sombra na Pandemia de Covid-19 e é inegável como do poder das sombras emergiram tantas possibilidades para a grande indústria farmacêutica e as corporações do ensino privado, notadamente na modalidade a distância. Nunca foi tão promissor o mercado da doença e da ignorância. O que custosamente esperamos do Estado o mercado sempre entrega antes. O capital tem pressa. O direito pode esperar, sobretudo se pensado a partir da classe trabalhadora.

 

Mesmo na modalidade presencial impõe-se a distinção entre ensino e educação. Se o Brasil sempre cuidou mal da saúde de seu povo, por que cuidaria bem da educação? O Brasil não se tornou desigual por força da pandemia de Covid-19. A desigualdade, já bem naturalizada, favoreceu muito a pandemia, mas não foi criada por ela. A pandemia apenas escancarou a desigualdade e, contraditoriamente, até poderia contribuir para sua desnaturalização. Mas a autocracia burguesa sabe como conter e administrar levantes e impedir sua conversão em luta de classes. Como pode cuidar bem da educação um Estado que sonega à maioria de seu povo os direitos fundamentais de morar decentemente, de acesso a trabalho digno, à saúde, à alimentação, ao saneamento, à segurança, ao lazer? O milagre da modalidade remota foi virtualizar essas condições objetivas. É tudo garantido pela sensação. Dane-se o real. Na tela do computador ou na pequena tela do celular podemos abrir e fechar salas e passar de uma sala a outra num piscar de olhos. Só os professores improdutivos, por cegueira ideológica, é que não conseguem ver a Covid-19 pelos olhos da oportunidade.

 

Neste pandêmico 2021 comemoramos o centenário de nascimento de Paulo Freire, o maior educador deste país e hoje, em morte, vítima de um segundo exílio até mais cruel e covarde do que o sofrido em vida pela ditadura empresarial-militar de 1964. Recorro à concepção freireana de educação para imprimir estatuto ontológico à diferença entre ensino e educação e insistir na impossibilidade de se fazer educação a distância. O homem, por força de sua constituição como ser social, tem, como bem reconhece Paulo Freire, uma vocação ontológica. O ato educativo, porque ato dialógico e entre sujeitos, é inerentemente ontológico. Segundo Hannah Arendt, “é muito fácil, porém, ensinar sem educar e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado”. Mas não se nega ao ensino a distância ou às aulas remotas o poder de criar a sensação de educar. A reflexão pode bem ser substituída pela recepção epidérmica.

 

Como explicar que o caráter síncrono da aula remota, que o diferencia do ensino a distância, e é vendido como sucedâneo da aula presencial, não lhe confere estatuto ontológico? As tecnologias do ensino produziram o professor insone, sempre on-line, mesmo quando as leis fisiológicas o obrigam a atividades impossíveis de execução remota. A verdade que se impõe nesta República carente de natureza pública e à distância do que a Constituição formalmente proclama como Estado Democrático de Direito, é que aula remota e ensino a distância somente manifestam e agravam a já histórica e bem programada distância entre povo e direito à educação desde antes da pandemia de Covid-19 e da atual e festejada falácia pedagógica vendida como educação a distância. Educação não combina com distância. Ensino a distância ou aula remota, por negarem a natureza ontodialógica do ato educativo, não podem ser chamados de educação. Afinal, para voltar ao título do início: não há vida nem educação remota.

 

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, 2º vice-presidente da ADUA e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe.



Galeria de Fotos