"Mãe Coragem: Por quanto tempo é que não tolera injustiça? Por uma hora, ou duas? Pense bem! Nunca se perguntou isto, embora seja a coisa mais importante: porque é uma desgraça, na prisão, quando a gente percebe de repente que já está tolerando a injustiça". (Brecht, Mãe Coragem e seus filhos).
01. Logo no início um sargento recrutador define a guerra a seu modo: “a paz significa apenas um relaxamento. Só a guerra é a ordem. Durante os tempos de paz, a humanidade se corrompe”. Anna Fierling permanece indiferente a tudo que acontece com ela e com os demais: é a única que não tira lições da guerra, nem se modifica por causa dela. Tem momentos esparsos de não-cegueira, como quando afirma que “as virtudes não rendem nada, só as maldades rendem”, ou quando afirma que os homens não são lobos, é sempre possível comprá-los, amam o ouro e “a venalidade dos homens é como a caridade do Bom Deus. É nossa salvaguarda. Enquanto exista, existirão julgamentos clementes e até os próprios inocentes terão chances de se saírem bem nos tribunais”. São frases típicas de Brecht, paradoxos reveladores e desmistificadores, que induzem o espectador a uma reflexão imediata. Outro momento em que Mãe Coragem fala por Brecht, é quando afirma que “num país próspero não há necessidade de virtudes, todos podem ser até mais ou menos medíocres, meio inteligentes e até covardes” (Fernando Peixoto).
02. O parágrafo acima, que ficou longo para os propósitos destas sete notas marginais, o reproduzi de Brecht: vida e obra, de Fernando Peixoto. É um comentário analítico à peça Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertolt Brecht (1898-1956), que por força do estatuto épico de peça política contra o avanço do fascismo e do nazismo na Europa da primeira metade do século XX adquiriu reconhecimento de obra de alcance universal. Segundo Fernando Peixoto, “o significado da guerra é o tema de Mãe Coragem e Seus Filhos”. Sim, a guerra, “essa outra maneira de continuar o comércio”, nas palavras de Brecht. O capital se alimenta da guerra surda e cotidiana. O fascismo é o recurso intermitente e extraordinário do capital para dar à guerra máxima audição e visibilidade.
03. O Dia das Mães nasceu na pátria do capitalismo. A cada ano ouço nas forças mediáticas corporativas a eufórica assertiva de que, à exceção do Natal, é a mais vendável data para o comércio. Como tem fôlego o mercado das emoções. Sentimentos de toda ordem são induzidos, boa parte com alta carga de culpa e felicidade depressiva, porque a ordem do capital, com inegável fundo religioso, é o mais eficiente e extensivo sistema de culpa de que a história tem conhecimento. Culpa e capital formam uma parceria de reconhecido sucesso e sua expressão mais ostensiva, com relevo e sofisticado poder opressivo, se materializa na exitosa teologia da prosperidade. Sem o ato individual da posse não existe consumidor feliz. O consumo é a reversão rebaixada do cogito cartesiano: se consumo sou. Se não, resta lutar para ser consumidor. O ato de poder consumir é como um sinal teológico de bênção. Igrejas e shopping centers se enlaçam num ritual que faz o céu descer à terra em forma de bênçãos e vitórias.
04. Considero uma divergência teológica de somenos discutir se Maria de Nazaré, mãe de Jesus, teve ou não outros filhos. O próprio Jesus de Nazaré relativizou a maternidade biológica ao se interrogar diante dos discípulos: Quem é minha mãe? Quem são minhas irmãs e meus irmãos? Dirigindo-se aos que o cercavam, com inegável distanciamento brechtiano, Jesus responde: eis aqui, neste lugar, minha mãe, minhas irmãs e meus irmãos. São todos aqueles que, coletivamente, estão construindo a utopia do Reino. A vocês os tenho e as tenho como meu irmão, minha irmã e minha mãe (cfr. Mt 12,48-50). A maternidade da ideologia burguesa é intrinsecamente excludente e egoísta. Jesus de Nazaré socializa sua mãe. Maria é mãe coletiva. Segundo Leonardo Boff, ela é o “rosto materno de Deus”.
05. Sem que tivessem conhecido a peça Mãe Coragem e Seus Filhos, de Brecht, as mães da Comunidade de Jacarezinho na zona norte do Rio de Janeiro agiram como mães coletivas e desceram o morro como milhares de Annas Fierlings politizadas. À diferença da Guerra dos Trinta Anos, falsificada como guerra religiosa, tal como um exército de Annas Fierlings e sua carroça sob a ordem da zona escura bélica e cognitiva, as mães de Jacarezinho se dirigem ao Brasil e ao mundo para dizer que a guerra não mata a todos igualmente. Os tiros se dirigem aos subalternizados. Não são balas perdidas. E mesmo quando chamadas de perdidas, as balas têm origem, porque são disparadas, em última instância, por ordem do capital genocida que dirige o Estado. O Estado brasileiro produziu e mantém sob cerco muitas Faixas de Gaza.
06. Brecht pôs em cena sua peça há 80 anos, em 19 de abril de 1941. A estreia ocorreu em Zurich e, seguramente, deve ter incomodado a suposta neutralidade do Estado suíço, reconhecido por abrigar em segurança lucros e dividendos extraídos dos trabalhadores e das trabalhadoras, na guerra e na paz, pelas mãos invisíveis do capital. Mãos invisíveis que deixam rastros de sangue bem visíveis e convertidos em criminosa espetacularização mediática, como ocorreu na chacina de Jacarezinho no último dia 06 de maio de 2021. A coragem das mães de Jacarezinho é a prova de que ainda correm dignidade e resistência entre os subalternizados. Jacarezinho, sem Antônio Conselheiro, sem Brecht, se recusa a ser a Canudos do século XXI. Menos ainda ser manipulada pela ideologia que denominou de religiosa a Guerra dos Trinta Anos na Europa do século XVII.
07. Diante do êxito do capitalismo religioso, ou do Capitalismo como religião, conforme o título de obra inacabada de Walter Benjamin (leitor de Brecht), o exemplo das mães de Jacarezinho nos indica que a ontologia do ser-mãe é antes de tudo uma ontologia social, da solidariedade coletiva, não redutível à fabricação ideológico-burguesa do individualismo da maternidade biológica. A pensadora política Hannah Arendt, insuspeita de inclinações marxistas, afirma que um ser que se recusa a assumir “responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-lo de tomar parte em sua educação”. As mães de Jacarezinho deram um exemplo de “responsabilidade coletiva pelo mundo”. As comunidades faveladas do Rio de Janeiro e do Brasil têm direito ao Estado Democrático de Direito. Querem trabalho, saúde, educação, espaços de cultura, bibliotecas, teatro, cinema, livros e não armas. Enfim, viver. Viver com alegria, “porque, nas palavras de Espinosa, o filósofo dos bons afetos, a multidão livre conduz-se mais pela esperança que pelo medo, ao passo que uma multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte”. Saudações de vida às mães, biológicas ou não, que se alimentam da ontologia social do ser-mãe.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA-Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 09 de maio do ano (ainda) coronavirano de 2021.
Foto: Eduardo Naddar/Reprodução
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