Afinal, que vem a ser uma bela mentira? A que se torna evidente por si mesma (Oscar Wilde).
01. Data de 1891 um célebre ensaio de Oscar Wilde intitulado A decadência da mentira. Segundo Wilde, a mentira deve ser celebrada na Arte, com maiúscula. Submetida aos artifícios políticos, a mentira se torna decadente. Somente a Arte eleva a mentira. A política a degrada. A única forma de Arte da política reside na verdade. Na verdade ontológica, distinta da verdade lógica. Não se trata aqui de objetivar a oposição entre uma proposição verdadeira e outra falsa, mas da dialética entre o real verdadeiro e o real aparente, o real manipulado pela política da mentira. Por isso, fora do regime da verdade é impossível haver política reconciliada com a Arte. Assim como para Bachelard a ciência é a estética da inteligência, a verdade deveria ser a estética da política. Somente na Arte a mentira torna-se nobre e verdadeira. Na política a mentira será sempre lugar do ilusório, da falsificação, sem o menor estatuto estético.
02. Karl Jaspers (1883-1969), num pequeno livro tecido de arraigada sabedoria, organizado a partir de 13 conferências filosóficas apresentadas na Rádio da Baviera no início dos anos 1960 e há 50 anos publicado no Brasil sob o título Introdução ao pensamento filosófico, indica o quanto é socialmente danosa a ausência da filosofia na vida política e o quanto a degeneração política hostiliza o pensamento filosófico: “(...) a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição”. O ódio à filosofia, sem a qual a razão adoece e é impedida de reconhecer seu estado patológico, é indicativo de regressão civilizatória. Filosofia e democracia, segundo Habermas, partilham de um destino comum. Num devir mútuo, uma sinaliza a existência da outra.
03. O livro dos Provérbios nos adverte sobre a perigosa e arrogante atitude do insensato e do tolo diante da sabedoria: “Até quando, insensatos, amareis a tolice, e os tolos odiarão a ciência” (Pr 1,23). A miséria filosófica presidida pelo ódio organizado como política e a ignorância cultivada como forma de vida fecundam o lodaçal cognitivo e propício à legitimação e manutenção da política no submundo da fisiologia e da mediocridade. A baixa política circula livre e domina o jogo no alto parlamento. Para Karl Jaspers, “Muitos políticos veem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão somente usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante”. Como filha da cidade – forma superior (segundo Aristóteles) de organização da vida social –, a filosofia já nasce como filosofia política.
04. Max Horkheimer (1895-1973), em seu Eclipse da razão (1947), diante do acelerado processo de degeneração da razão em razão instrumental na cultura do Ocidente, chega a dizer que a filosofia ao não mais se definir como “a memória e a consciência da espécie humana” pode levar a marcha da humanidade a assemelhar-se “(...) à circulação sem sentido da hora de recreio de um manicômio”. A razão instrumental é a razão capital que preside e é presidida pelo padrão irracional (porque insustentável) de produção e consumo do sistema do capital. Seu avassalador e universal modo de operar subtrai à razão sua potência revolucionária. Filha dileta da razão positivista, a razão instrumental hoje administra e controla braços e mentes da classe trabalhadora por meio do poder ideológico e das mãos ditas invisíveis do mercado. Quanto mais impessoal e anônimo, mais forte e eficiente é o poder do mercado. O mercado é a forma mais canalha de justificar e subtrair responsabilidade aos seus operadores: o mercado exige, foi o mercado, o mercado está nervoso, o mercado não admite... A consciência filosófica é condição da crítica ao exercício autoritário do poder controlado pela soberania da “vontade” e das “mãos invisíveis” do mercado.
05. Em razão de sua ontologia ser definida pela estética, a verdade da Arte pode prescindir da conexão epistêmica entre o conceito e o real. Na verdade, quanto mais mecanicamente colada ao real, mais pobre será a Arte. Para efetivar sua potência transcriadora, a Arte necessita se descolar do real. Sem distanciamento não há transfiguração. Trata-se de um devir estético, não de artifício ou ardil. Na política, quanto mais o conceito se aparta do real, e por artifício ou ardil fabrica um mundo paralelo, maior é o distanciamento da verdade. A verdade da política está no vínculo social entre o exercício do poder e as condições reais e objetivas do povo. No Brasil, a autocracia burguesa vive noutro mundo e não guarda o menor vínculo com o país real. No real paralelo da burguesia não há lugar nem conexão com o real de carne-e-osso da classe trabalhadora. A alta burguesia da Paulista está mais próxima da especulação da Bolsa de Nova Iorque do que da miséria de Heliópolis, a maior favela paulistana.
06. Segundo Agnes Heller, “a vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão social do trabalho intelectual e físico”. Quando a política perde a capacidade de manter em equidade a relação entre poder e bom senso, que Descartes tinha pela coisa mais bem partilhada no mundo, a justiça e o direito se apartam da vida cotidiana e cedem lugar ao arbítrio da autocracia. A democracia é o regime do acesso à verdade. Submetida à carência de reflexão e ao mutismo pelo arbítrio do poder, a vida cotidiana é corrompida pelo poder da mentira. O exercício da razão implica o direito ao uso público da palavra. Sem o domínio político da palavra a classe trabalhadora seguirá dominada pela miséria da política controlada pela autocracia burguesa. Somente o domínio político da palavra, para pensar com o Mouro de Trier, pode transformar a teoria em força material nos braços e mentes da classe que produz riqueza.
07. Como falar em Estado Democrático de Direito quando o executivo do Estado moderno, como atesta o Manifesto de 1848, funciona como um comitê destinado a cuidar dos interesses orgânicos da autocracia burguesa? A República brasileira já nasceu golpeada e no contracurso do que aponta o conceito de coisa pública: a res publica é proclamada como res privata. O que é uma república apartada da verdade, da justiça, do bem comum, do interesse público? A resposta mais direta a esta pergunta nos vem de Santo Agostinho, na Cidade de Deus: remota itaque justitia, quid sunt Regna, nisi magna latrocinia? Quando a justiça é removida (da vida social) o que são os Estados senão um bando de ladrões? A República não é nem pode ter partido. Seu partido é o interesse público. Sem República o Brasil seguirá em marcha social regressiva, avassalado pela pandemia viral da Covid-19 e pela pandemia cognitiva da mentira.
* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 12 dias de abril do ano (ainda coronavirano) de 2021.
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