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  06/04/2021 - por José Alcimar de Oliveira





“Enxugará toda lágrima de seus olhos e já não haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor, porque passou a primeira condição” (Ap 21,4)

 

          01. O texto da epígrafe acima, no Livro do Apocalipse, remete à utopia da Nova Jerusalém, do novo céu e da nova terra. Quando o mostrei ao camarada Sartre, ele de imediato reagiu, sem ser reativo, e fundamentado no denso estudo de sua ontologia fenomenológica em o Ser e o nada, de 1943, fez-me ver que não temos outra condição senão esta que não escolhemos e nela nos damos conta que nos cabe viver. O ser-em-si que nos joga no mundo não se faz acompanhar de essência, é carente de explicação e sem razão de ser. Ao tornar pública sua teoria, Sartre recebeu um duplo ataque, dos marxistas e dos cristãos. Respondeu a ambos.  Na verdade, com mais vagar aos marxistas do que aos cristãos, se considerarmos o acerto de contas que fez com a tradição do materialismo histórico e dialético em sua portentosa Crítica da razão dialética, de 1960. Sartre, intelectual militante, insistia que é necessário agir sem esperança.

 

          02. Pelos marxistas Sartre foi questionado quanto à alegada tendência   à inação e ao fatalismo de sua teoria, e que pouco peso dava aos condicionamentos que a história impõe ao ser social. O texto marxiano de O 18 Brumário o deixou muito intrigado:  “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Em sua célebre conferência, O existencialismo é um humanismo, de 29 de outubro de 1945, publicada no ano seguinte, Sartre começa a mover-se em direção ao marxismo, por ele depois designado como “filosofia insuperável de nosso tempo” nos idos de 1960, ano em que visitou o Brasil e veio até Manaus. Não fossem as restrições de Simone de Beauvoir, que muito reclamou do quente e úmido baré, Sartre teria saboreado um jaraca frito no velho Adolpho Lisboa. Quanto a mim, aos quatro anos e morando numa pequena casa no distante bairro de Flores, onde meus pais Marcondes e Ana Nilda trabalhavam como caseiros, ainda me encontrava inteiramente sob o regime do ser-em-si.

 

          03. Quanto aos cristãos, mais precisamente a oficialidade cristã, guardiã da ortodoxia doutrinal tutelada pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Sartre preferiu não investir maior energia intelectual. Além do mais, seus livros já haviam sido incluídos no terrível Index Librorum Prohibitorum (o catálogo dos livros proibidos pela Igreja). Foi somente em 1965, no pontificado de Paulo VI, que o ex-Santo Ofício teve o nome mudado para Sagrada Congregação, a mesma que impôs ao teólogo Lonardo Boff um ano de “silencio obsequioso” no início dos anos 1990, em razão da crítica que ele fez ao sistema de poder da Igreja em seu livro Igreja: carisma e poder. Embora abolido em 1965, o famigerado Index dos livros proibidos persiste por meios mais difusos e sutis, haja vista a força do fundamentalismo religioso capitalizado pela próspera teologia da prosperidade. Hoje a economia assumiu prerrogativas de ciência religiosa. Nunca esteve no horizonte do pensamento sartreano afirmar ou negar a existência de Deus. Já estava por demais assoberbado com a existência do ser contingente.

 

          04. O agir sem esperança sartreano parece bem menos enganador do que a esperança retida na caixa da deusa Pandora. Abandonado pelas demais divindades que preferiram o refúgio sereno no Olimpo às agruras do mundo sublunar, o ser social nem sempre pode confiar na esperança, única deusa que Pandora deixou para a humanidade. Por isso, é melhor apostar na ação do que na esperança. A esperança, sobretudo a falsa esperança, pode malbaratar a ação. A falsa esperança conduz à distopia, porque manipula a ação. A esperança verdadeira tem seu movente na utopia e na práxis seu fundamento. Sob esse itinerário, Jesus de Nazaré, Marx e Sartre, por distintas ontologias de compreensão do real, foram pensadores utópicos: todos apostaram na ação. Todos fundamentaram a esperança na ação. Não é este o princípio gramsciano: combinar de forma dialética o pessimismo da inteligência (a crítica) com o otimismo da vontade (a ação)?

 

          05. O sentido radicalmente humano e utópico da ressurreição reside na afirmação da vida. O choro de Maria Madalena diante do sepulcro vazio e sua visão dos dois anjos apontam para o futuro, para a utopia do Reino, ao contrário do anjo da história de que nos fala Walter Benjamin, cujo olhar estranhamente se volta para o passado. Um tipo de retrotopia (Bauman).  A distopia de Madalena foi momentânea. No imediato de sua visão parecia haver somente lugar para o corpo morto de Jesus de Nazaré. Um topos distópico. Mas logo sua distopia cede lugar  à utopia. O teólogo João registra em linguagem demasiadamente humana como Maria Madalena, mulher discriminada, foi a primeira pessoa a ver o Cristo Ressuscitado. Madalena, porque de Magdala, um pequeno povoado perto do lago da Galileia. Seguramente um povoado de má fama, tão estigmatizado pelas autoridades farisaicas no tempo de Jesus quanto estigmatizada foi até ao século XXI, pela Igreja Católica, sua filha Madalena: tachada de prostituta, pecadora, adúltera e possuída por sete demônios. 

 

          06. Registra o teólogo João:  “Chorando (Maria Madalena), inclinou-se para olhar dentro do sepulcro. Viu dois anjos vestidos de branco, sentados onde estivera o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés. Eles lhe perguntaram: ‘Mulher, por que choras?’. Ela respondeu: ‘Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram’. Ditas essas palavras, voltou-se para trás e viu Jesus em pé, mas não o reconheceu. Perguntou-lhe Jesus: ‘Mulher, por que choras? Quem procuras?’. Supondo ela que fosse o jardineiro, respondeu: ‘Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste e eu o irei buscar’. Disse-lhe Jesus: ‘Maria!’ Voltando-se ela, exclamou em hebraico: ‘Rabôni’ (que quer dizer Mestre). Disse-lhe Jesus: ‘Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai, mas vai a meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus’.  Maria Madalena correu para anunciar aos discípulos que ela tinha visto o Senhor e contou o que ele lhe tinha falado” (Jo 20, 11-18). Em conclusão: numa exegese fielmente heterodoxa, diria que Madalena tem precedência apostólica sobre Pedro, o chefe dos apóstolos.  

 

          07. Tenho certeza que neste domingo da Ressurreição, 04 de abril de 2021, Dercy Gonçalves (1907-2008), também mulher irredenta e filha de Magdala (Santa Maria Madalena, RJ), juntamente com Maria Madalena da Galileia, celebrarão com Jesus de Nazaré a vitória ontológica da vida sobre a necrocracia que, combinada à pandemia de Covid-19, está convertendo o Brasil no maior cemitério a ceu aberto do mundo. Maria Madalena e Dercy, ambas de Magdala, nos protejam a nós brasileiros. Para os devidos registros no Grande Memorial da Vida, este escrevinhador e teólogo sem cátedra atesta que desde 2016, por obra do Papa Francisco, o mais franciscano dentre os jesuítas, Maria Madalena (a mulher mais citada nos evangelhos) foi incluída no Calendário Romano como Santa Maria Madalena, cuja festa litúrgica é celebrada no dia 22 de julho. Ela, agora, é apostola apostolorum (apóstola dos apóstolos) e, desde já, para conhecimento de São Pedro, faço lembrar que Dercy Gonçalves é a mais fiel amiga e escudeira de Santa Maria Madalena.

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo heterodoxo e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, no Domingo da Ressurreição, aos quatro dias de abril do ano (ainda coronavirano) de 2021.



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