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  09/02/2021 - por Luiz Fernando Souza Santos





Passamos em Manaus por dias de turbilhão. Fomos lançados no olho do furacão das consequências mais letais da pandemia pelo Sars-Cov-2. Minha escrita mesma é construída agora sob o sopro da morte, que atingiu minha família e atinge os lares da cidade. Mas, onde estão as determinações das condições em que nos encontramos?

 

Para não ir tão longe numa visada na linha do tempo, embora seja possível, vou lembrar aqui brevemente do governo de José Melo. Nunca será demais apontar o esquema fraudulento que este governador montou para pilhar recursos da saúde pública no Amazonas. Um esquema milionário que envolveu o governador e empresários que exploravam o setor de saúde. Quando a Polícia Federal estourou o esquema criminoso o chamou de Operação Maus Caminhos.

 

À época desta pilhagem, David Almeida era o líder do governo na Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (ALEAM). Qualquer denúncia contra o governo era atacada por seu líder de forma raivosa e destemperada na tribuna. David Almeida se tornou Presidente da ALEAM. O então deputado Sabá Reis passou a ser líder de José Melo. Meses depois, o Zé Merenda (como é conhecido Melo por conta de superfaturamento de produtos da merenda escolar quando foi Secretário de Educação do Estado) foi preso e teve seu mandato cassado. David Almeida, ao assumir interinamente o governo do Estado, afirmou que daria continuidade à gestão de Melo. Sabá Reis continuou como líder de governo.

 

O tempo passou. Veio a pandemia e o Estado que teve seus recursos para a saúde roubados não estava preparado para enfrentá-la. Na primeira onda não havia leitos nos hospitais, insumos básicos. Cenas dantescas foram inevitáveis. Mortos empilhados em contêineres ou espalhados em corredores de hospitais, valas coletivas, etc. O atual governador Wilson Lima é, também, personagem ativa no roteiro de horror, assim como a política genocida de Bolsonaro, mas não vou explorar isso aqui (já o fiz em outras publicações).

 

No segundo semestre de 2020 houve a corrida eleitoral para a Prefeitura de Manaus e Câmara de Vereadores. Concomitante às eleições a pandemia continuava, suas taxas de infecção e de óbitos foram manipuladas de modo a apresentarem um cenário de que estava tudo bem. Pesquisadores alertavam para o perigo, defendiam uma política de isolamento social, de lockdown, que nunca ocorreu.

 

David Almeida foi eleito. O líder, fiel escudeiro, do ex-governador preso na Maus Caminhos, agora saía eleito Prefeito de Manaus. Ao tomar posse, a escalada acelerada de contágio pelo coronavírus já estava posta. Em poucos dias, um cenário pavoroso que de longe empalideceu a primeira onda do vírus em Manaus explodiu. Não há oxigênio nos hospitais. Na capital e no interior as pessoas estão morrendo sem ar. O Amazonas é tal qual um campo de concentração, no qual seus governantes e administradores são como soldados da SS e, a massa da sociedade local, aquela que deve morrer asfixiada.

 

Dias antes do colapso do fornecimento de oxigênio no Amazonas, a empresa fornecedora havia comunicado do aumento da demanda em razão da escalada de contágio e dos riscos de desabastecimento. O governo Bolsonaro sabia. Quando o Ministro Pazuello esteve em Manaus, já tinha esse informe, mas, ao invés de traçar uma política para prevenir tal colapso, foi deliberadamente omisso. Fez propaganda do “tratamento precoce” com kit de remédios sem eficácia para os efeitos da COVID-19. Foi embora. Quatro dias depois, Manaus ficou sem oxigênio.

 

A chegada da vacina abriu os portões do inferno que deixaram à mostra todo o ódio de classe dos governantes do Amazonas e de Manaus. O plano de vacinação revela-se um engodo, uma mera formalidade, pois a vacina é para as classes ricas do lugar. Sob o comando do Prefeito David Almeida, filhas e filhos dos ricos, empresários e políticos foram vacinados. Sabá Reis, que junto com David Almeida, foi líder do governo de José Melo, é agora Secretário de Limpeza Pública do município. Sabá Reis furou a fila e recebeu a primeira dose da vacina.

 

A Operação Maus Caminhos, a primeira onda do vírus, com pico nos meses de março e abril de 2020, a explosão de contágio e mortes sem oxigênio nesse início de ano e a vacinação dos poderosos, pelo exposto aqui, revelam que a letalidade do Sars-Cov-2 em Manaus e diversas cidades do interior não se explica exclusivamente pelas determinações biológicas do mesmo, mas por sua articulação numa rede de corrupção, de roubo da coisa pública e, fundamentalmente, de um escancarado ódio das classes mais ricas do lugar contra os trabalhadores, os pobres, os indígenas, os idosos etc.

 

As cidades do Amazonas estão sitiadas pelo vírus e por um projeto de morte bancado pela política reacionária e pelos ricos arrivistas. Não há uma pessoa sequer das classes subalternas na capital do Amazonas que não tenha um morto para chorar. Balzac parecia antever a Manaus de nossos dias com suas classes ricas a escarnecer da miséria dos debaixo quando, em Ilusões Perdidas, escreveu: “velhas famílias dependuradas em seu rochedo como corvos ressabiados. (…) Escarnecedoras, denegridoras, avaras. (…) Famílias que sofrem de um monarquismo burro, devotamente fanáticas”.

 

O roubo dos recursos destinados à saúde, a negação de políticas de isolamentos social, a ausência de renda mínima para os mais pobres numa escala temporal que acompanhe o desenrolar da pandemia e em seus desdobramentos a posteriori, tratamento precoce sem base científica, colapso do fornecimento de oxigênio e a vacinação dos mais ricos, apontam para a potencialização dos efeitos letais do Sars-Cov-2 por um projeto que se assenta no ódio-pânico dos donos do poder nos sertões amazônicos. Contra o ódio de classe destes últimos, a alternativa é a organização da classe que vive do trabalho para tomar as ruas.

 

No momento em que escrevo este texto as ruas do país são tomadas pela Carreata Fora Bolsonaro. No Amazonas, uma Frente Cabana, que reúne diversos partidos de esquerda, lideranças indígenas, pastorais sociais, sindicatos, estudantes etc também vai às ruas. A Carreata Fora Bolsonaro local apresenta três bandeiras: pague o auxílio, vacina já! e oxigênio.

 

Na cidade sem oxigênio, a reversão do atual quadro de morte passa por derrotar aqueles que estão no poder.

 

Fora, Bolsonaro!

Fora, Wilson Lima!

Fora, David Almeida!

 

* Luiz Fernando de Souza Santos é sociólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Ufam. Este artigo foi publicado originalmente no dia 23 de janeiro de 2021 em movimentorevista.com.br.



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