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  18/08/2020 - por José Alcimar de Oliveira





 

É preciso destruir o preconceito, muito difundido,

de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser

a atividade intelectual própria de uma determinada categoria

de cientistas especializados ou de filósofos

profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto,

demonstrar preliminarmente que todos os

homens são filósofos (Antonio Gramsci)

 

01. Nesse 16 de agosto de 2020 comemoramos o dia do filósofo. Poderia ser também a data para se comemorar a arte do pensar e, a seguir o grande pensador da epígrafe acima, devem ser incluídos nesse dia com igual estatuto de Filósofos todas e todos que cultivam a sabedoria, do jardineiro ao pós-doutor, do pajé indígena, pai ou mãe de santo, trovador popular, cordelista, benzedor, até aqueles que foram convidados a proferir sua aula magna no renomado Collége de France, como Foucault e Barthes. E por que não Patativa do Assaré ou o nosso Zé da Zilda (do Filósofo e meu amigo Marcos José) e seu parceiro Biu Buduia, ambos de Manaus e ambos no contracurso da figura servil do Zé Ninguém do atualíssimo Wilhelm Reich? E as mulheres? Que belo trio, para pensar em três mulheres militantes nesse Brasil que parece naturalizar o ódio ao pensamento, não seria formado por Carolina Maria de Jesus, Elizabeth Teixeira e Marilena Chauí (as duas últimas vivas)?

 

02. A filosofia é a democracia do pensamento. O requisito básico do filósofo é o cultivo da sabedoria, seja por meio de conceitos acadêmicos, seja pelo manejo sábio das palavras daqueles que, mesmo impedidos de entrar nos templos acadêmicos, impedidos do acesso à cultura letrada, exercitam a arte de falar enraizados na sabedoria construída no chão da vida e na casca do alho. Filósofos Narradores da Tradição Oral. Em regra, as Academias são mais habitadas por funcionários da ciência do que por intelectuais e, dentre estes, poucos sábios, e menos ainda intelectuais das classes subalternas. O que há, em excesso, são intelectuais subalternos das classes orgânicas. Quanto a isso, é sempre saudável uma visita ao velho Gramsci. Milton Santos, a propósito dessa contradição (explicável) já denunciava que no Brasil aumenta o número de letrados e diminui o número de intelectuais.

 

03. Não cabe o reconhecimento de filósofo a quem impede ou trava a democracia do pensamento. A quem impede o acesso às letras. A quem conjura o iluminismo. Aqui, peço que leiam com atenção as sábias palavras do incontornável Immanuel Kant (1724-1804), reproduzidas ipsis litteris: “Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento [Aufklärung]. Isto seria um crime contra a natureza humana (grifo nosso), cuja determinação original consiste precisamente neste avanço”. Por mim, não consideraria exagero nenhum que esta declaração kantiana se espalhasse nos muros dos becos, das ruas e nas praças, não na forma de outdoors (palavrazinha excrescente), mas de panfletos e intervenções artísticas e emancipatórias.

 

04. Sem filosofia não há democracia. Não falo de democracia burguesa, que é, por si, um contrassenso. Democracia é poder do povo, mas do povo livre e sem medo. Do povo-multidão, de todas as cores e credos. Da liberdade de pensar. Como dizia o meu caríssimo Espinosa no Tratado político: “Porque a multidão livre conduz-se mais pela esperança que pelo medo, ao passo que uma multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte”. São realidades excludentes: 100 mil mortes e democracia. 100 mil mortes indicam necrocracia. Viver sob o poder da morte. Da política da morte. Da necropolítica, segundo Achille Mbembe. Democracia é política da vida. Não é de estranhar que Jesus de Nazaré, incluído como Filósofo no livro Meus filósofos, de Edgar Morin – hoje com 99 anos e a quem dedico essas linhas no dia do Filósofo – , tenha dito: “vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10).

 

05. Se filosofia é a democracia do pensamento, outra coisa ela não pode ser senão saber do povo livre e sem medo. Santo Agostinho, esse monumento do saber teológico e filosófico da Antiguidade Cristã, afirma que a sabedoria é que é, portanto, a medida da alma (modus ergo animi sapientia est). Essa medida, esse modo de ser, não se confunde com o saber acadêmico. É saber da vida, saber viver. Conviver. Não excluir. Não discriminar. A filosofia não pode vicejar fora do cultivo do canteiro democrático, do jardim de mil plantas e flores. Habermas, hoje aos 91, nos apresenta esta bela equação filosófica: “A filosofia e a democracia não só partilham as mesmas origens históricas como também, de certo modo, dependem uma da outra”. No primeiro período do Curso de Filosofia aprendi que a filosofia é filha da cidade, da pólis. Mas é na cidade também, sobretudo quando nas mãos de malfeitores, que mais se conspira contra a filosofia. Isso não se iniciou hoje. Voltem a Sócrates e sua condenação à morte na “democrata” cidade de Atenas.

 

06. Hoje, no prevalente regime da semiformação (ou semicultura), segundo o fecundo conceito do velho Adorno, e bem mais fecundo atualmente que ao tempo do autor da Dialética negativa, virou regra acusar de esquerdopata, esquerdista, comunista, quem se recusa a rezar pelo catecismo da mediocridade cognitiva (é ausência de pensamento mesmo) que infesta as redes sociais. Minha rede de dormir, de ler e de pensar, já foi desinfestada. Além do mais, disponho de excelentes filtros cognitivos, em vários modelos, de Heráclito a Paulo Arantes, de Epicuro a Dom Pedro Casaldáliga, de Agostinho a Carolina Maria de Jesus, de Abelardo a Marx, de Paulo Apostolo a Alain Badiou, de Epicuro a Elizabeth Teixeira, de Platão a Espinosa, de Jesus de Nazaré a Lênin, de Aristóteles a Kant, de Parmênides a Hegel, do Filósofo Operário Joseph Dietzgen a Marilena Chauí. E são muitos os fecundos afluentes do caudaloso rio da Filosofia.

 

07. Para ficar apenas em sete parágrafos, concluo chamando à agora das ideias mais dois mestres do pensamento filosófico: Epicuro e Karl Jaspers. O primeiro, Epicuro, foi tema do TCC de Karl Marx em Filosofia. O segundo, Karl Jaspers – e preventivamente adianto que ele está isento do “periculoso pensamento de esquerda”, bem como da “terrível ameaça do marxismo cultural”, é autor de uma conhecida, ao menos nos meios filosóficos, Introdução ao pensamento filosófico, apresentada inicialmente na forma de comunicações radiofónicas há mais de 50 anos na Alemanha.

 

7.1. Epicuro: “Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou, assemelha-se ao que diz que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz”. É o mais belo elogio à filosofia já escrito.

 

7.2. Karl Jaspers: “Muitos políticos veem facilitado o seu nefasto trabalho pela ausência de filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam uma inteligência de rebanho”. Karl Jaspers, prof

essor de uma desconhecida aluna chamada Hannah Arendt, nunca esteve no Brasil e publicou esse texto em 1965.

 

*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe.

Em Manaus, AM, no Dia do Filósofo, 16 de agosto do ano coronavirano de 2020.



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