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  17/08/2020 - por José Alcimar de Oliveira





 

Para Bertolt Brecht, in memoriam, aos 64 anos de sua morte, em 14 de agosto de 1956: “a justiça é o pão dos pobres”

 

01. O grande polvo mediático, com suas redes corporativas nas mãos da burguesia (meu velho e saudoso amigo Brizola costumava se referir à mais poderosa, Globo, como um grande polvo), continua a enganar o povo brasileiro e a envenenar os desinformados com a mentira de que o funcionalismo público é o responsável pela crise financeira do Estado Oligárquico Brasileiro. De início, é preciso dizer que a maioria do funcionalismo público, atualmente sob cerrado ataque do Estado Burguês, ganha mal, trabalha muito e é grande o percentual de adoecimento em muitas categorias, sobretudo da educação, da saúde e da segurança. O Estado brasileiro está hoje submetido à mais violenta e regressiva decomposição institucional, sobretudo quando se trata da garantia de direitos sociais aos habitantes da Senzala. A Casa Grande vai muito bem e bem servida. Para ela, um Estado Grande e Generoso. Para a Senzala, um estado cada vez mais minimizado e cruel. O grande Machado de Assis, nos anos de 1860, já denunciava o abismo a separar o Brasil Oficial do Brasil Real, “de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias”, conforme outro grande brasileiro, Guimarães Rosa, em seu Grande sertão: veredas.

 

 

 

02. Nos quase 131 anos da República que nunca foi (e foi proclamada para uma população bestializada, com a permissão de José Murilo de Carvalho) não chegou a somar três quinquênios o período de trégua da chibata nas costas dos subalternizados, entre 2003 e 2016, até o golpe, em que o governo e não o poder esteve sob o comando da política de conciliação de classes nos mandatos de Lula e Dilma, sob monitoramento ostensivo da “autocracia burguesa”, conceito da lavra do grande Florestan Fernandes e de elevada aderência destrutiva para pensar o capitalismo no Brasil. Estamos longe do ideário comunal, do governo e do poder controlados pelos subalternizados da história, seja da Comuna de Paris, em 1871, seja da rebelião comunitária de Canudos, entre 1893 e 1897, ano em que os destemidos combatentes sertanejos, sob a liderança de Antônio Conselheiro, foram feitos prisioneiros e brutalmente assassinados na mais sangrenta barbárie protagonizada pelo Exército “republicano” e “civilizador”, registrada por Euclides da Cunha na última parte de Os sertões.

 

 

 

03. Construí o melhor de minha formação política nos luminosos anos de 1980, na constelação teórica e militante da Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base, nas Pastorais Indígena, da Terra e Operária e na relação política de base com o Partido dos Trabalhadores, ao qual nunca me filiei, mas ajudei a construir. Experimentei o melhor do PT dos movimentos sociais, sempre nas trilhas construídas pelos de baixo, nunca nas cúpulas partidárias. Mas o PT do governo se dissociou do PT dos movimentos sociais. José de Souza Martins prefere, em lugar de governo, falar “Do PT das lutas sociais ao PT do poder”, afirmação que dá título a um livro seu a um só tempo inteligente e polêmico. Sem querer polemizar com um dos mais proeminentes cientistas sociais do país, penso que o PT nunca, de fato, exerceu o poder. Para governar, desde o início teve que ceder poder à burguesia, que nunca teve seu mandarinato ameaçado. Ao apostar na difícil conciliação com a Casa Grande e abdicar da formação da consciência e da organização da classe secularmente senzalada, o PT cedeu ao inimigo de classe as armas para o golpe parlamentar de 2016. Apassivada pela sedutora, transitória, despolitizada e frágil inclusão pelo consumo, a classe que vive do e à procura de trabalho ficou sem meios de reagir ao golpe.

 

 

 

04. Os sindicatos, hoje enfraquecidos e criminalizados, sobretudo os que mais combateram a perversidade do neoliberalismo, foram atacados pela burguesia, de um lado, e, de outro, hostilizados por setores do PT do governo. O ANDES-Sindicato Nacional dos docentes do ensino superior é um caso modelar. Aqui isento dessa atitude hostil, que chegou ao extremo de promover a criação de um sindicato chapa branca e cassar a Carta Sindical do ANDES-SN, aqueles que se mantiveram no chão da luta, que é, e deveria ser, a razão de ser do PT. Por nunca ter cedido à colaboração de classe e continuar a fortalecer a luta da esquerda classista, o ANDES-SN mantém-se como o mais combativo sindicato da história do sindicalismo brasileiro. O paradoxo é que o ANDES-SN foi atacado, no governo do PT, por defender princípios abandonados por setores da cúpula partidária (PT) e sindical (CUT).

 

 

 

05. Não se trata de ressentimento, menos ainda de revanchismo – mas antes de manter-se fiel ao contraditório devir da história –, reconhecer que mesmo nos governos Lula e Dilma o núcleo duro da política neoliberal permaneceu intocado. A despeito da impossível e malograda tentativa de equacionar distribuição de renda e concentração de riqueza, deixando as grandes fortunas isenta de taxas e engavetando a exigência constitucional da auditoria da dívida, a verdade é que hoje tanto o PT quanto os que seguiram nas trilhas da esquerda classista e do método da luta de classes, são alvo da desmedida agressividade ultraneoliberal. A ultradireita, que age com sangue nos dentes e promove uma gestão de saque, agora elegeu o funcionalismo público como o inimigo a ser combatido. Sob a batuta da Autocracia Burguesa do Grande Capital, Executivo, Congresso, Forças Mediáticas Corporativas, Fundamentalismo Religioso se organizaram em Frente Única para promover a Contrarreforma Administrativa.

 

 

 

06. Mesmo que uma insignificante parcela de servidores tenha salários indecentemente elevados, como ocorre no judiciário, legislativo e em alguns setores do executivo, a verdade sempre ocultada é que a grande maioria dos servidores, sobretudo da saúde e da educação, todos do poder executivo, ganha mal, trabalha muito, e tem sido o alvo preferido dos defensores do Estado mínimo. Trata-se de um jogo sujo, fundado num discurso mentiroso, que manipula as estatísticas e toma a porciúncula de uma parte do todo e mostra a todos como se o todo fosse. Por exemplo, como separar e comparar as despesas com saúde e educação e as despesas com os servidores públicos se a maioria desses servidores está exatamente nas áreas da saúde e da educação? Seria, então, possível que saúde e educação funcionassem sem servidores? A verdadeira sangria, que nenhum governo, desde a Constituição de 1988, teve coragem de enfrentar, encontra-se na voracidade da dívida pública, nunca auditada, como exige a Constituição. E alguém acredita que o atual governo, privatista e de ultradireita, irá se mover para auditar essa dívida que drena recursos públicos da saúde, da educação, da habitação, do saneamento, da segurança, da cultura e de outros setores para o rentismo voraz? O caminho mais fácil para a burguesia democida, que vampiriza o país, é jogar nas costas dos servidores a responsabilidade pela gestão de saque ao erário do qual ela permanentemente se beneficia.

 

 

 

07. Só a luta muda a vida. Somente a grande luta muda a história. É sinal de grandeza política não submeter a divergências ideológicas – que para a esquerda classista é sinal de vida e da boa militância – a luta maior contra as forças do atraso e da geopolítica da destruição e do entreguismo. O PT é ainda a mais enraizada e popular força política de esquerda da sociedade brasileira. Desconhecer isso é cegueira política. Por outro lado, o PT, para se manter enraizado nas massas, precisa submeter a política eleitoral ao objetivo maior da formação, da consciência e da organização da classe trabalhadora, da qual nós servidores públicos fazemos parte. O que nos divide pode nos dividir na interpretação, nunca na identificação do inimigo a ser combatido: a autocracia burguesa. O PT e as demais forças de esquerda só podemos honrar a memória de intelectuais coletivo dos subalternizados, da Academia e do Chão da Luta, como Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Antonio Candido, Edmundo Fernandes, Chico de Oliveira, Paulo Freire, Elizabeth Teixeira, Francisco Julião, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Hélder Câmara, Dom Zumbi, e tantas e tantos, se mantivermos na teoria e na prática a lição do Mouro de Trier: a teoria só adquire força material quando se impregna nas massas. Por fim, não há serviço público sem servidor público. Quem ataca o servidor público conspira contra a natureza de nosso já frágil Estado Democrático de Direito.

 

* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, no mês de agosto do ano coronavirano de 2020.

 



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