01. O Evangelho de Jesus de Nazaré sempre estará em conflito com o conservadorismo e as práticas do moralismo negador da vida. Evangelho é alegria, humor saudável, liberdade, coisa que Jesus era impedido de exprimir e de experimentar nas sinagogas e nos cultos de seu tempo. Por isso, ele gostava mesmo era do espírito cultivado em sua Betânia, sem preconceitos e longe do farisaísmo daqueles que se proclamavam Doutores da Lei. Gostava de se refugiar na casa de Marta e Maria. Gostava de permanecer e de conviver com os simples.
02. A Igreja-Poder sempre foi hostil ao riso. No romance O nome da rosa, Umberto Eco, grande referência para o estudo do mundo medieval, mostra esse conflito no tenso diálogo entre o venerável Jorge, monge cego e guardião da biblioteca (seria uma referência reversa ao grande Jorge Luis Borges?) e o franciscano Guilherme de Baskerville: em resposta ao franciscano, que defendia o direito cristão ao riso, o monge rebate: o riso afasta o temor de Deus, e sem o temor a fé é impossível.
03. Verdadeiramente humano, Jesus de Nazaré apostou na Igreja-Povo. Não discriminava ninguém, nem mesmo o célebre fariseu Nicodemos, príncipe dos judeus, que foi ter com ele à noite por medo de ser retaliado pelo fascismo devoto da época. Mesmo sabendo da prisão cognitiva em que vivia Nicodemos, de seu apego ao poder, a generosidade de Jesus de Nazaré o impeliu a uma longa e didática conversa com o renomado e envergonhado fariseu. Sabia que lançava semente em terra pedregosa. A ele, Nicodemos, era impossível fazer o trânsito epistemológico do ser-em-si enredado pelo fundamentalismo religioso ao para-si da liberdade para “nascer de novo” apresentado por Jesus de Nazaré.
04. Avesso a todo ressentimento, o Nazareno era um homem livre. Sobre ele Santo Irineu afirmou ter sido o primeiro homem livre da história. Certamente riu muito, contou parábolas e sempre cultivou bons afetos. Betânia era a casa dos seus verdadeiros amigos. Ali se cultivava uma epistemologia evangélica em conflito com a obtusidade legalista do culto farisaico. Betânia teria sido o embrião dos Círculos Bíblicos e das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): alegria, partilha, vida comunitária, tudo regado a boa conversa e humor verdadeiro.
05. O bom humor é sinal de inteligência e liberdade de espírito, algo impossível de ser encontrado nos ditadores e naqueles que os seguem e cegamente os idolatram. Nietzsche, um teólogo sem cátedra, mas certeiro na crítica à religião do ressentimento, afirmava ser impossível acreditar num deus que não soubesse dançar. Antes de serem positivadas pelos cânones da racionalidade instrumental, a força originária das religiões, sem exceção, estava também na dança, na celebração da vida, na manifestação do que Nietzsche denominava de potencialidade dionisíaca da existência. A verdade, é que por força do enquadramento canônico e apolíneo, o culto à vida cedeu lugar ao culto à verdade. Ao cancelar a precedência do Caminho sobre a Verdade, a Vida foi sacrificada. Em sua fala originária, diz o Nazareno: eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida.
06. Hoje, pela manhã, descobri que a Argentina é um país sério: em 2012 inaugurou o Museu do Humor, em Puerto Madero, Buenos Aires, no local da velha e famosa cervejaria Munique. Quando tiver oportunidade de voltar à Argentina, esse será meu primeiro destino. Hoje o Brasil apresenta um baixíssimo coeficiente de bom humor. O ódio parece ter-se organizado como forma de vida política. Penso que o riso é uma das formas de combater o ridículo em que se transformou o Brasil.
07. Manter o riso, a alegria, o bom humor e seguir na luta. João Paulo I, o Papa que encantou o mundo com o seu sorriso, cuja morte até hoje está envolta em suspeitas e tramas de cúpulas e de poder, mostrou sem palavras a potência do riso e do bom humor. Se o Papa Francisco, a despeito de sua rígida formação jesuítica, trocou o nome de Jorge Bergoglio para Francisco, é porque percebeu a força evangélica da seráfica alegria franciscana. Como assinala o poeta Jean de Santeuil: ridendo castigat mores – rindo castiga os costumes, sobretudo os maus costumes e os costumes dos maus e perversos.
*José Alcimar de Oliveira, franciscano ex corde e teólogo sem cátedra, em 12 de julho de 2020.
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