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  06/07/2020 - por Gilberto Calil





O Brasil chega ao final de maio aproximando-se de 60.000 mortes nos números oficiais em meio a um movimento coordenado de reabertura econômica em grande parte dos estados e municípios.

 

Depois de mais de três meses de isolamento social, é inegável que grande parte da população está esgotada e ansiosa para a retomada de certo nível de normalidade. Neste contexto, no entanto, é necessário refletir: a) como chegamos a este ponto? b) quais são as estratégias possíveis frente a isto e suas implicações?

 

Segundo levantamento da agência de checagem Aos Fatos, o presidente Jair Bolsonaro repetiu 31 vezes que sua estratégia em relação à pandemia se baseia em chegar em 70% da população contaminada, com o que atingiria a chamada “imunidade de rebanho”. Trata-se de uma política baseada em três suposições: que com 70% da população contaminada haveria uma estagnação da pandemia; b) que os contaminados estariam imunizados; c) que a letalidade da Covid-19 é baixa. Na segunda quinzena de fevereiro, governos de diversos países orientaram suas políticas por esta perspectiva, incluindo-se Estados Unidos, Reino Unido, Holanda e Bélgica. Igualmente grupos empresariais associaram-se a ela, proclamando que a economia não podia parar, do que a campanha Milano no se ferma é o caso exemplar. No início de março, no entanto, o rápido crescimento do número de mortes, em patamar muito superior ao estimado, levou os distintos governos a renunciarem a esta política e pedirem desculpas aos cidadãos. O último dentre eles foi Donald Trump, que no dia 24 de março, frente a um estudo que indicava que até o início de agosto mais de 100.000 estadunidenses poderiam morrer, considerou isto inadmissível e afirmou publicamente que eram necessárias medidas de contenção. Embora a previsão fosse considerada alarmista, o país ultrapassou de 100.000 mortes muito antes, em 23 de maio.

 

Posteriormente, diversos estudos de incidência, realizados na cidade de Nova Iorque e em países como Espanha, Itália, Suécia e França, indicam uma taxa de letalidade real de 0.7% a 1.3%, sempre considerando não ter havido colapso do sistema de saúde. Ou seja, havendo atendimento médico disponível, morrem em média 1% dos contaminados. Ruía assim o principal pilar da política de “imunidade do rebanho”.

 

Mais tarde, diversos estudos mostrariam também que a imunização dos contaminados pode não ser definitiva e que em apenas três meses o nível de anticorpos já diminui enormemente. É por isto que a proposta de “imunidade do rebanho” não é mais considerada como alternativa em praticamente nenhum lugar do mundo.

 

Neste contexto, já no final de março Jair Bolsonaro era o único líder político de um grande país que defendia uma posição contrária ao isolamento social generalizado, propondo uma política de “isolamento vertical”, sem base científica e inteiramente inviável nas condições concretas da estrutura social e familiar brasileira. Colocou-se então contra a suspensão das aulas e o fechamento do comércio. Além disso, sua política era reforçada por campanhas de desinformação travadas nas redes sociais, que difundiam que haveria poucas mortes no Brasil, já que o país teria uma população jovem, uma baixa densidade demográfica e um clima tropical aos qual o vírus não resistiria. Uma mentira muito difundia afirmava que o vírus não resistia a temperaturas superiores a 26 graus (ignorando que a temperatura interna do corpo humano é bem superior a isto), o que pode ter sido determinante para que os estados do Norte e Nordeste tenham sido os mais atingidos nos meses de abril e maio. Se aplicada de forma integral, esta política teria levado a centenas milhares de mortes em poucas semanas.

 

No entanto, medidas tomadas por diversos governos estaduais, com suspensão de aulas e fechamento do comércio, limitaram o ritmo de expansão da pandemia e em algumas situações quando o colapso do sistema de saúde era iminente, decretaram inclusive políticas de lockdown, embora sua duração fosse limitada a poucos dias e abrandada assim que o número de internações começava a cair.

 

Com 57.070 mortos (27/6), estamos, o Brasil chega a 1.313.667 contaminados nos dados oficiais, o que significa que temos 0,6% de contaminados. O país, no entanto, é um dos que menos testa no mundo, com 13.776 testes por milhão de habitantes (incluindo-se neste número testes rápidos, que não deveriam ser considerados) e, pior ainda, 2.22 testes realizados por resultado positivo (o mínimo para se ter um controle mínimo da pandemia seria 20 testes por positivo). Se estes dados fossem verdadeiros, para chegar aos almejados 70%, teria que aumentar mais de 100 vezes, passando de 5 milhões de mortes. A pesquisa nacional Epicovid-19, conduzida pela UFPEL, apresenta dados mais próximos da realidade e sustenta a estimativa de que estaríamos com 5 vezes mais infectados, portanto com uma taxa real de 2.9% em 26/6. Ainda assim, partindo deste percentual, teríamos que aumentar 24 vezes para chegar nos 70% que Bolsonaro propõe, passando assim de um milhão de mortes. Além disto, para chegar neste índice sem colapsar o sistema de saúde seria necessário um longo período, e quando chegássemos neste índice provavelmente a maior parte dos “recuperados” já teria perdido a condição de imunização.

 

O que fazer?

 

 

Na condição atual, embora pareça haver oposição entre a posição de Bolsonaro e a da maior parte dos governos estaduais, na realidade são variantes de uma mesma estratégia. Bolsonaro segue insistindo por uma reabertura generalizada e imediata, que implicaria em uma explosão de casos e um colapso geral e nacional do sistema de saúde em poucos dias.

 

Os governos estaduais e seus planos de reabertura gradativa pretendem controlar as taxas de contaminação, de forma a evitar um colapso do sistema de saúde, mas absolutamente não propõem nenhuma medida voltada à efetiva contenção da pandemia.

 

Pretendem apenas limitar a rapidez de proliferação da doença, e por isto seus planos tem como um dos elementos centrais a taxa de ocupação hospitalar. Ignoram o fato de que mesmo com atendimento, ainda assim 1% dos contaminados vai a óbito.

 

Existe alternativa? Certamente sim, e passa por um lockdown nacional, unificado efetivo, com participação e apoio de todas as autoridades e segmentos sociais, como ocorreu em inúmeros países. A ostensiva sabotagem presidencial faz parecer que esta alternativa é inviável, mas é a única real e factível, como defendido pelo epidemiologista Pedro Hallal, reitor da UFPEL e coordenador da Epicovid-19. Atualmente 129 (60.5%) dentre os 213 países e territórios monitorados pelos wordometers têm menos de 1.000 casos ativos (incluindo-se o país mais populoso do mundo e 29 dentre os 90 países com mais de dez milhões de habitantes). Dentre eles, 27 não registram nenhum caso ativo e outros 18 registram menos de 10 casos.

 

O Vietnã, que tem quase metade da população que o Brasil e um pib per capita que é apenas 29% do brasileiro, adotou políticas efetivas de contenção e não registra nenhum óbito desde o início da pandemia, estando com apenas 25 casos ativos.

 

As opções são, portanto: a) uma política de liberação geral, com consequências intensamente desastrosas, nos termos propostos pelo presidente da República; b) uma política de liberação gradativa, que alterna momentos de abertura e fechamento (que provavelmente se prolongariam por meses ou anos, até que se tenha uma vacina), sem se colocar a possibilidade de contenção efetiva, nos termos propostos pela maioria dos governadores; c) uma política de contenção efetiva, baseada em um lockdown efetivo pelo tempo suficiente, amparada em vigorosa ampliação do número de testes para monitoramento real da situação e na garantia de renda emergencial a todos. Não deveria ser difícil identificar a melhor alternativa entre elas.

 

*Gilberto Calil é professor do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).



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