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  03/06/2020 - por Lino João de Oliveira Neves





“A covid-19 está devastando as comunidades indígenas do mundo e não se trata apenas de saúde.”
José Francisco Cali Tzay, Relator Especial das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas

 

Falar dos impactos da pandemia de Covid-19 sobre os povos indígenas exige duas considerações prévias: sobre a própria doença e sobre a maior suscetibilidade dos indígenas à doenças em geral.

 

Sobre o elemento patogênico Sars-CoV-2, o novo coronavírus, e a sua manifestação, a Covid-19, já  foi falado tudo, de considerações fundamentadas à especulações descabidas. O maior absurdo já dito é que se trata de uma pandemia “democrática” que atinge a todos indistintamente de idade, gênero, orientação sexual, classe social, religiosidade, nacionalidade  e origem étnica. Essa é uma enorme mentira ideológica que procura encobrir as profundas desigualdades sociais que marcam as sociedades modernas, responsáveis diretas pelos efeitos, também desiguais, das doenças sobre os diferentes segmentos sociais. É certo que o coronavírus pode infectar a todos, porém a doença a Covid-19 é tratada, vencida ou não, a partir de condições médico-hospitalares extremamente desiguais que estão diretamente relacionadas aos recursos financeiros disponíveis pelo sujeito contaminado.

 

Os povos indígenas são frequentemente citados como os grupos humanos mais vulneráveis. Contudo, essa é uma verdade apenas parcial. É fato que por não possuir anticorpos os indígenas estão mais suscetíveis a doenças, principalmente infectocontagiosas, que ao atingir outros grupos sociais causam menores danos à saúde. Mas, é necessário entender que essa vulnerabilidade não é intrínseca a dos povos indígenas; é uma vulnerabilidade socioeconômica que resulta das relações sempre marginalizadas impostas pelos Estados e sociedades nacionais. “Estão vulneráveis”, e não “são vulneráveis” por uma qualquer deficiência que lhes seja “natural”. Em seus territórios, longe das ameaças do mundo branco, os indígenas são senhores de si, na higidez de suas existências sociais e humanas.

 

A Covid-19 representa perigo de genocídio para todos os povos indígenas no país, principalmente para aqueles localizados no interior da Amazônia, e de maneira ainda mais acentuada aos povos indígenas isolados.

 

A pandemia tornou público aquilo que nós que trabalhamos com questões indígenas há tempos denunciamos: a implantação no país de uma política anti-indígena, desde os governos anteriores – Dilma e Temer – e vertiginosamente aprofundada no governo irresponsável e criminoso de Jair Bolsonaro; uma anti-política que elege os povos indígenas como inimigos do país, definindo como objetivo final a retirada de todos os direitos indígenas assinalados na Constituição Federal de 1988 e em diplomas legais internacionais dos quais o Brasil é signatário.

 

No campo da saúde, essa política anti-indígena promoveu a desestruturação do subsistema de saúde indígena que, apesar de sempre ter sido ineficiene, atendia satisfatoriamente às demandas sanitárias nas aldeias e de populações indígenas nas cidades.

 

Com o sucateamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), os polos básicos de atendimento instalados nas terras indígenas estão, em sua maioria, inoperantes, sem médicos, enfermeiros, equipamentos de segurança, testes para a identificação de contágios, medicamentos etc.

 

Se os indígenas que vivem nas aldeias dificilmente poderão contar com atendimento médico-hospitalar, os que moram em Manaus e outras cidades enfrentam situação três vezes pior. Primeiro, porque estão mais expostos a contaminação. Segundo, porque ao se dirigirem às unidades do sistema público de saúde – que, em todo o país estão em frangalhos! – não são atendidos, sob a alegação de que o atendimento aos indígenas é responsabilidade dos DSEIs/Sesai. Terceiro, quando buscam os DSEIs, mais uma vez não são atendidos, agora com a alegação de que o subsistema de saúde indígena se destina exclusivamente aos moradores das aldeias e que, na condição de “índios urbanos”, e, portanto, considerados como “desaldeados”, não têm o direito ao atendimento pelos DSEIs.

 

O elevado número de indígenas no Amazonas contaminados pelo coronavírus deve ser entendido por dois fatores: pelo maior número de povos e a maior população indígena no pais se localizar no Estado e em consequência da política antí-indígena que ao promover o sucateamento da Sesai/DSEIs precarizou os serviços de saúde destinados aos os indígenas.

 

Em 28 de maio, quando do fechamento deste artigo, os dados compilados pela Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (APIB) indicavam: 75 povos atingidos, 1.471 indígenas infectados, 149 indígenas falecidos, sendo 101 destes no Amazonas, o que corresponde a 67,78% dos casos de mortes. Considerando os altos índices de subnotificação que se verifica em todo o país, os números da Covid-19 sobre os povos indígenas são ainda mais graves.

 

A situação é trágica não apenas no Amazonas. O fato é que a pandemias já alcançou todas as regiões do país atingindo praticamente todos os povos indígenas. A situação dos povos indígenas, que antes da pandemia já era de desassistência se agrava em ritmo assustador, enquanto as medidas de prevenção e controle da doença continuam a ser conduzidas pelos poderes públicos com a mesma morosidade que historicamente caracteriza a política indigenista brasileira.

 

O risco de genocídio é uma realidade que se mostra mais presente à medida que o surto de Covid-19 se aproxima das terras ocupadas por povos isolados, estes sim que podem ser considerados como os mais vulneráveis dos vulneráveis, pois não têm anticorpos para enfrentar os efeitos do contágio. Caso se confirme as projeções de avanço da pandemia aos territórios dos povos isolados, estes serão levados inevitavelmente ao genocídio.

 

A uma primeira vista pode parecer que por estarem localizadas em regiões remotas algumas aldeias estão mais protegidas. Contudo, esse distanciamento acarreta um complicador a mais, aumentando o risco real de, em caso de contaminação, toda a comunidade ser exterminada antes que tenha acesso a qualquer atendimento, inclusive sem que haja notícia sobre o acontecido.

 

É impossível prever a dimensão final da pandemia sobre os povos indígenas, mas a responsabilidade direta por suas consequências cabe ao governo brasileiro, ao atual e aos anteriores, que com suas políticas de saúde descompromissadas com as necessidades da população desestruturaram do sistema de saúde pública, e em especial do subsistema de saúde indígena.

 

Para os interesses anti-indígenas, a Covid-19 surge como um aliado mais que oportuno. O extermínio dos povos indígenas permite ao senhor Jair Bolsonaro implantar o seu projeto, já publicamente declarado, de liberar as terras indígenas ao extrativismo predatório dos recursos naturais e à ocupação por latifúndios do agronegócio destinados à exportação de commodities.

 

Seria leviano, talvez, afirmar que o governo Bolsonaro promove a expansão da Covid-19 às áreas indígenas como estratégia para promover a “limpeza das terras” e com isso eliminar o “obstáculo” que representa a presença ainda hoje no país de 305 etnias indígenas. Contudo, não é difícil perceber que a catástrofe que se anuncia para os povos indígenas é muito bem-vinda a determinados setores da sociedade nacional ávidos por se apropriar das terras indígenas e colocar em prática o projeto do governo Bolsonaro de exploração predatória dos recursos naturais da Amazônia.

 

Em suma, o que se pode esperar da atual pandemia? O plano do governo Bolsonaro no enfrentamento da Covid-19 tem nome: genocídio.

 

Genodício, é o cenário que se pode prever para a forma irresponsável e criminosa – nunca é demais lembrar! – como o governo Bolsonaro tem conduzido as medidas de enfrentamento à pandemia. Se essa estimativa é válida para todos os segmentos da população brasileira, é ainda mais real para os povos indígenas.

 

Foto: MATHEUS ALVES/MNI/REPRODUÇÃO



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