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  03/06/2020 - por Francisca Sena





Embora a sociedade não reflita efetivamente sobre o encarceramento, os relatos de familiares e os resultados de vários estudos, pesquisas e dossiês revelam que milhares de pessoas são submetidas às condições degradantes quando estão sob a custódia do Estado. A superlotação e a insalubridade das prisões no Brasil que já eram graves, diante da pandemia de Covid-19, intensificaram as violações de direitos humanos de pelo menos 750.000 pessoas, sendo mais de 37.000 mulheres (INFOPEN 2019). A situação do sistema socioeducativo, com cerca de 27.000 pessoas (2015), também não é diferente. O país é o 3º maior em número de encarceradas/os e seus efeitos também precarizam a vida dos familiares dessa população, especialmente das mulheres. E não estamos falando apenas de números, mas de pessoas com nome e sobrenome, com histórias de vida, com sentimentos, relações de afetos. O racismo, as desigualdades de classe e o patriarcado são estruturantes do encarceramento e do internamento, cujo perfil é jovem, empobrecida/o, negra/o, masculino e com baixa escolaridade.  


As pessoas privadas de liberdade, em princípio deveriam perder o direito de ir e vir, devendo ter assegurados pelo Estado a própria vida, a saúde, a alimentação, a educação, o trabalho e o contato com familiares. Com a pandemia, esses direitos que já não eram garantidos, deixaram de ser cumpridos.
 

Agora, mais do que antes, é urgente acabar com a superlotação das unidades prisionais e socioeducativas, colocando as pessoas em liberdade a partir de critérios legais, amparados pelo próprio Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Países como o Irã e os Estados Unidos, conhecidos pelo seu rigor, libertaram pessoas presas que fazem parte de grupos de riscos e aquelas que não cometeram crimes violentos.


Para manter o encarceramento em pleno vigor, mesmo numa situação emergencial, o sistema judiciário e os poderes executivos federal e estaduais têm adotado medidas que agravam a situação da saúde da população carcerária. Entre as medidas adotadas pelos governos estão: suspensão da saída de presas/os que cumprem regime semiaberto; proibição de visitas; suspensão da entrada de produtos que familiares levam (alimentação, água, produtos de higiene, remédios); suspensão do deslocamento das pessoas encarceradas para as audiências. Caso a situação permaneça como está, será decretada a pena de morte para quem vive confinado. Essas medidas, especialmente a suspensão das visitas, associada ao medo do contágio da Covid, motivaram rebeliões e fugas em presídios, como ocorreu em São Paulo e Manaus.


Para completar, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN propôs a absurda instalação de contêineres nas unidades prisionais para colocar as pessoas encarceradas com Covid, gerando indignação de familiares e de organizações que atuam no acesso à justiça e garantia de direitos humanos no sistema prisional. Após intensa campanha e pressão política desses sujeitos, em 15/05, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP rejeitou por unanimidade a proposta.


Na contramão do encarceramento em massa, estas organizações têm produzido reflexões, pressionado o poder público e realizado ações a partir da perspectiva do direito e da justiça da população carcerária. Diante da pandemia, elas têm clamado pela urgência de medidas preventivas no sistema prisional e socioeducativo, para que seus efeitos não sejam devastadores. Entre as propostas, estão: soltura de presas/os provisórias/os; concessão de prisão domiciliar para as pessoas de risco (idosas, gestantes e pessoas com doenças crônicas - imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes, com diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV); proibição da entrada de novas pessoas no sistema; priorização de medidas cautelares alternativas à prisão; antecipação da progressão de pena; ações educativas de prevenção à covid; acesso à água potável; distribuição de material de proteção individual e de higiene. Parte dessas medidas está expressa na Recomendação Nº 62, do CNJ.


O encarceramento em massa é tão naturalizado que a sociedade tem dificuldade de conceber uma vida sem prisões. As poucas reflexões sobre o cárcere não são superficiais, têm um viés moralista e punitivista. As pessoas acreditam na falácia de que a prisão é capaz de ressocializar alguém. A experiência prova o contrário, enquanto o encarceramento cresce. Ressaltamos que o debate sobre o desencarceramento não propõe a anistia do crime cometido, mas a responsabilização de quem o praticou, na perspectiva de justiça restaurativa.  A maioria das pessoas encarceradas não cometeu crimes violentos: Em julho/2019, 39,4% das pessoas respondia por crimes relacionados às drogas; 36,7%, crimes contra o patrimônio; 11,3%, crimes contra a pessoa; 0,1%, crimes contra a administração pública.


Quanto às mulheres encarceradas, representam 4,68% (2019) do total de pessoas presas. Embora esse percentual seja pequeno, é importante dar visibilidade e problematizar a sua realidade. Cerca de 80% delas são mães. A grande maioria das mulheres não cometeu crimes violentos, que atentem contra a vida. Se cerca de 20% dos homens são encarcerados por conta do tráfico de drogas, as mulheres representam mais de 60%, embora elas não ocupem um lugar de comando no tráfico de drogas, revelando que as desigualdades de gênero influenciam na punição. A quantidade de drogas apreendida com elas é pequena. Dados da Defensoria Pública do Estado do Ceará (2017) indicam que 22% das mulheres presas no Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa estavam portando até 10 g de entorpecentes e 35% delas, de 11 g a 100 g. Em suma, a grande maioria, 58%, é presa com uma quantidade de entorpecentes que poderia qualificá-la como usuária ou no máximo como pequena traficante.


Em meados de 2017, Adriana Ancelmo, então esposa do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que cumpre pena de 18 anos de reclusão por associação criminosa e lavagem de dinheiro, conseguiu ficar em prisão domiciliar, baseada marco legal da 1ª infância (Lei 13.257/2016). Com base nessa experiência, o Coletivo de Advogados de Direitos Humanos, a Defensoria Pública da União, as defensorias estaduais e várias organizações da sociedade civil, impetraram no Supremo Tribunal Federal o Habeas Corpus – HC Coletivo 143.641, solicitando a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar em todo país de mulheres grávidas, mães de crianças com até 12 anos de idade e com deficiência. Até hoje, o HC, representa um desafio para que seja cumprido, pois o poder judiciário rejeita o aspecto coletivo e quer analisar os casos isolados, sem efetivar sem assegurar esse direito às mulheres encarceradas que estão no perfil. Isso revela que não só a entrada no sistema prisional é seletiva, mas a saída dele também é, onde o racismo, o patriarcado e as desigualdades econômicas são definidores.


Diante dessa realidade marcadamente desigual, a sociedade do chamado cidadão do bem e do bandido bom é bandido morto, classifica quem é humano e quem não é, quem merece ou não viver, quem é e não é digno de bem estar. Se há desigualdades, também há entre nós semelhanças, mesmo que não aceitemos. É confortável acreditar que somos diferentes e melhores. Mas quem está no cativeiro também é gente! Sente fome, dor, alegria; faz coisas erradas e coisas certas; ama, tem ódio e se revolta; adoece, precisa de cuidados e morre; canta, dança e tem suas crenças; pensa, dorme, sonha e tem pesadelos; tem familiares; sente saudade e sonha com liberdade. Que no caos gerado pela pandemia de Covid, possamos: superar nossa indiferença e desprezo com as pessoas encarceradas; ampliar as reflexões sobre o sistema prisional; realizarmos ações em defesa dos direitos e da justiça dessa população. Isso é urgente!

 

Foto: AGÊNCIA BRASIL/REPRODUÇÃO



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