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  03/06/2020 - por Josias Ferreira de Souza





Os povos indígenas da América do Sul historicamente tiveram seu território invadido, usurpado e explorado. Há mais de 500 anos, a população indígena vem a sofrer sucessivos ataques e, ainda hoje, é vítima de atrocidades. Porém, continuam a resistir e os seus territórios e terras indígenas todas são marcadas com sangue nativo, que o Estado Brasileiro por meio de seus legítimos representantes insistem em esconder, ao negar sua existência e seus direitos consuetudinários.

 

Nossa história por muitos anos foi contada a partir da visão do invasor e do explorador. Nessas narrativas, atribui-se ao indígena todas as formas de preconceitos que se reverberam no presente. A partir dessa visão, o indígena do Brasil se viu obrigado a lutar por seus territórios e terras indígenas, que de uma hora para outra não era mais seus. Sob o comando da elite empresarial do país, foram desocupados (usurpados) para dá lugar a grandes empreendimentos como fazendas, plantações de café, construção de estradas, hidrelétricas, etc. Os povos originários dessas terras passaram de aliados a inimigos do progresso e empecilho aos planos da agenda econômica do país.

 

O contexto indígena sempre foi marcado pela lutas e resistência. Os termos invasão, exploração, usurpação, negação, invisibilidade, excluídos do sistema e criminalizados os acompanham diariamente. A pandemia, que hoje nos assola, apenas amplia, aumenta, o que sempre o Estado tentou esconder, que agora visível apresenta os problemas que os povos indígenas enfrentam há séculos e as estratégias que utilizam para continuar protegendo seus iguais. Assim sendo, a luta é histórica, mesmo assim, ainda se vê as graves violações de seus direitos.

 

O povo Sateré-Mawé possui uma população de 13 mil indígenas, distribuídos entre o Rio Andirá e Marau, na divisa dos Estados do Amazonas e do Pará, nos limites jurídicos das cidades de Barreirinha, Maués, Boa Vista do Ramos e Parintins. Esse povo tem uma história de luta semelhante à de outros povos indígenas do Brasil, que atualmente moram nas aldeias e centros urbanos.

 

Desta forma, apresenta-se a realidade dos Sateré-Mawé que moram em Parintins e, em tempo de pandemia, tiveram que enfrentar os inúmeros obstáculos de uma única vez. Porque, embora já esquecidos, a sua fonte de renda também foi afetada pela falta de venda de seus produtos: artesanatos e obras de arte. Com a quarentena, os indígenas Sateré ficaram desorientados, desprezados e invisíveis aos olhos do poder público local.

 

Com o objetivo de conter o rápido contágio da Covid-19, a cidade fechou o comercio, deixando em funcionamento apenas os serviços essenciais, o que no linguajar Sateré-Mawé significa “ficar de resguardo” até passar o período “perigoso”. Neste caso, ninguém é autorizado a entrar e sair da cidade nem da Terra Indígena Andirá-Marau. Esta última conta com uma equipe de vigilância sanitária responsável para fazer o bloqueio. Desta forma, os barcos de recreio não têm autorização de transitar nesse trajeto e, assim, não podem trazer os produtos regionais que fazem parte da alimentação das famílias Sateré que se encontram fora da aldeia como farinha, tapioca, tucupi, banana, cará, laranja, batata doce, abacaxi, etc.

 

Em Parintins, alguns indígenas Sateré moram na Casa de Trânsito, popular Casa do Índio, lugar que concentra famílias que estão na cidade de forma temporária, ficando de uma semana a um mês para depois retornarem à aldeia. Outros moram nas periferias da cidade como invasões, em casa própria ou na de familiares e conhecidos. Os mesmos se deslocam para a cidade na esperança de ter acesso à saúde, à educação e à assistência social de qualidade, serviços comuns a todos os cidadãos do país.

 

O problema não é a quarentena nem o lockdown, mas o quão distante estão as políticas públicas destinadas à população. A desigualdade social escancarada apenas mostra que os indígenas da cidade não têm acesso aos serviços básicos e comuns, e em muitos casos são privados deles. Neste aspecto, inclui-se o uso das tecnologias, o acesso à informação, o atendimento médico e hospitalar e o atendimento parcial das instituições indigenistas que têm o papel de proteger e garantir seus direitos.

 

Nem todos os indígenas fazem uso da tecnologia e, em tempo de pandemia e distanciamento social, sem acesso à internet, celular, computador e rede social, ficam isolados de fato, sem se comunicar com suas famílias na cidade, haja vista que a recomendação é para ficar em casa. Por conseguinte, não existe igualdade. As realidades são diferentes, o que resta aos indígenas da cidade é a desigualdade e as dificuldades.

 

Os desafios dos indígenas na cidade são diversos, o que se revela no tratamento das instituições indigenista como Sesai e Funai. A Sesai de Parintins faz uma certa distinção entre os indígenas da cidade e das aldeias. Os que moram na cidade são abandonados e desprezados. A Coordenadoria Local da Funai Parintins não tem capacidade de gerenciar a própria manutenção física e enfrenta dificuldades para propor uma ação em defesa da causa indígena, motivo pela qual foi criada, porque se encontra sucateada.

 

Desprezar a causa indígena em tempo de pandemia é uma estratégia de invisibilizar essa população. Discurso presente nos embates políticos das autoridades, a exemplo do que proferiu o ministro da educação, no cenário nacional, em “odiar o termo povos indígenas”. Se o desafio era reconhecer o indígena na aldeia e na cidade, agora mais do que nunca é preciso visibilizá-lo no Estado de Direito e Pluriétnico, que a todo custo tenta negar a existência indígena (física e cultural) e violar seus direitos.

 

A cidade de Parintins age da mesma forma com o povo Indígena Sateré-Mawé. Em três dias do mês de junho, é palco da maior festa folclórica da região norte, espetáculo para inglês ver. São dias de exaltação à identidade e à cultura indígena, festa comandada pela indústria da cultura para mostrar o índio fantasia e romantizado. Depois do espetáculo, os indígenas da cidade continuam abandonados e discriminados, porque não existem ações concretas destinadas a atender à população indígena local.

 

Os dois contextos relatados - um em âmbito nacional e outro local - apresentam o retorno de práticas da colonização, em que seus sujeitos são explorados e quando não são mais úteis são simplesmente descartados. Nesse sentido, a proposta de descolonização coloca o indígena como autor da própria história e, assim, pode contar, descrever e, a partir de sua visão, protestar contra medidas unilaterais que os prejudicam. Isso significa descontruir de forma crítica o que ao indígena foi imposto, porque o indígena quer ser reconhecido como cidadão comum, porém sem deixar sua cultura específica e diferenciada.

 

O que a pandemia mostra são os problemas resultantes de séculos de invasão e exploração. Não obstante, a luta indígena, não começa no tempo de pandemia, a antecede e vai além, continua. O que permanece é o alerta de que os povos indígenas precisam urgentemente de políticas públicas efetivas que estejam de acordo com as demandas e necessidade da população que se encontra na cidade e na aldeia.

 

Portanto, o povo Sateré-Mawé, os filhos do guaraná, também fazem parte dos Povos Indígenas do Brasil. Enquanto cidadãos, sujeitos de direitos, lutam por dias melhores, sem discriminação, preconceito e conceitos estereotipados, em respeito à diferença e com o direito de serem diferentes.

 

*Josias Ferreira de Souza (membro do clã Sateré/ut) é graduado em Biologia e Pedagogia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Ufam e professor da Escola Indígena de Ponta Alegre do Rio Andirá, na Terra Indígena Andirá-Marau.

 

Foto: BRUNO KELLY/REUTERS/REPRODUÇÃO

 



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