01. Nesse dia 31 de maio de 2020 o mundo cristão católico celebra a Festa de Pentecostes, a Festa do Espírito, que em grego é pneuma (sopro). Na tradição bíblica há uma ligação entre o Espírito e o vento: sob o mesmo termo se designa tanto “espírito” quanto “sopro”. O sopro é fonte de vida. Em Jo 20,22 há o registro de que Jesus de Nazaré “soprou sobre eles (os discípulos) e lhes disse: recebei o Espírito Santo”. A narrativa da Criação está associada ao poder do sopro. Mas nem todo espírito (pneuma) é sopro divino: Paulo, que segundo Badiou é o grande artífice do universalismo, associa o Anticristo ao “Príncipe do poder do ar”. O que sopra mentiras, como ocorre hoje de forma programática pelos dispositivos mediáticos sob o controle do capital.
02. Os seguidores do Caminho, como os primeiros cristãos designavam o projeto histórico de Jesus de Nazaré, só se animaram (entusiasmaram) de forma destemida a fazer da vida o Caminho de construção desse Projeto a partir da experiência de Pentecostes, Festa do Espirito Santo. Onde há vida, há festa e alegria.
03. A morte, esse contingente necessário, ocorre sob as mais diferentes contingências. Morrer por sufocamento é seguramente a mais cruel e sofrida das mortes. Os relatos de muitos que morreram em razão da Covid-19 são pungentes. Os que escaparam sabem o que é a angústia (aperto) de buscar o ar e não conseguir.
04. O sufocamento que levou à morte George Floyd não foi causado pela Covid-19. Em sua causa, imediata e remota, há a assinatura do ódio racista, do ódio de classe, da violência como instrumento da política. Apelidado por seus colegas de Big Floyd, George Floyd, 46, morreu na rua, talvez “atrapalhando o tráfego”, com o joelho de um policial branco sobre o seu pescoço, impedindo-o de respirar. Num grito sufocado, dizia de forma repetida: “não consigo respirar”, “não consigo respirar”.
05. George Floyd morreu como sempre viveu: sem poder respirar. Sua morte não foi um acidente isolado. Não foi natural. Simone de Beauvoir, aliás, recusa a ideia de morte natural. O grito de George Floyd, “não consigo respirar”, “não consigo respirar”, ignorado pelos policiais que o continham de forma covarde e desumana, converteu-se num grito de classe, e desde Minneapolis começou a ecoar pelo mundo.
06. Não se vence a opressão de classe sem a resistência e a luta de classe organizada. E não ceder à violência nessa resistência não significa desconhecer que as formas de luta dos que vão às ruas, tão apressadamente classificadas como vandalismo pela burguesia genocida, se constituem como um ato segundo, porque a violência primeira, permanente e estruturalmente organizada, é a que os “esfarrapados do mundo” (Paulo Freire) sofrem na vida cotidiana.
07. A luta pela justiça é a mais necessária e democrática das lutas. Apartada da justiça, da garantia dos direitos coletivos, à moradia, à educação, à saúde, ao saneamento básico, ao emprego, à segurança, toda democracia será falsa. Não existe direito à vida sem a garantia desses direitos básicos. O velho Santo Agostinho, em sua clássica Cidade de Deus (obra considerada por Mészáros como “a maior filosofia da história de inspiração religiosa”), assinala que “remota itaque justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia” (se desaparece a justiça, o que podem ser os Estados senão um bando de ladrões).
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, na Festa de Pentecostes, aos 31 de maio do ano coronavirano de 2020.
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