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  27/04/2020 - por José Seráfico





Os acontecimentos dos últimos dias revelam quanto importa a qualidade dos governantes, sobretudo em momentos de crise. Quando tudo vai bem, quando as contas públicas batem, quando a sociedade alimenta esperanças e seus líderes reúnem condições de efetiva liderança, tudo parece mais fácil. Em nações onde a desigualdade mostra sua cara todo o tempo, em todo lugar, e as elites têm maior compromisso com os problemas sociais, possivelmente é mais fácil governar. Ainda assim, sem que os maiorais tragam consigo qualidades nem sempre bem distribuídas, as dificuldades avultam. Não se espere que as elites, por si mesmas, abandonem o egoísmo e repentinamente todos se tornem benfeitores. Afinal, a sociedade contemporânea optou por modo de produção fundado no que de mais nocivo o ser dito humano traz consigo: o egoísmo.

 

Nenhum arranjo social se presta mais à desigualdade que a economia de mercado. Neste, sabe o mais rude aluno de economia, oferta e procura se encontram, essencialmente, para também encontrar um preço. Isso quer dizer que tudo, desde as amizades até a vida têm um valor. O valor de mercado, aquele pelo qual os bens são ofertados, mas também são demandados. Tudo se vende, tudo se compra. Desde a virgindade de jovens mulheres, à decisão de governo.

 

Por isso, soa-me hipócrita a manifestação de empedernidos apóstolos do mercado reclamando da compra de sentenças judiciais, da licitação fraudada, da corrupção. Ou terão que assumir seu compromisso com essas práticas, ou admitirão a necessidade de mudar radicalmente o sistema que se transformou em uma religião, com todos os vícios que a fé pode trazer consigo. Além das virtudes, mais proclamadas que exercitadas.

 

Pode, porque não se trata de uma determinação divina, nem um fenômeno da natureza que não vale a pena discutir. A sociedade que temos, aqui e alhures; ontem, hoje e amanhã, será sempre resultado de nossa própria forma de agir, coletivamente. Portanto, jamais será mais bem qualificada do que são seus construtores.

 

Em consequência disso, qualquer que seja o governante, na sociedade democrática a qualidade do modelo de convivência é responsabilidade de todos, eleitores e votados. É bem essa a situação pela qual passamos agora.

 

Desde 2019, sabia-se dos problemas econômicos que se impunham e de seus resultados. Se já se sabia das dificuldades a enfrentar no campo econômico, pior ainda se fôssemos colhidos por problema originado fora do País. A soma da crise econômica anunciada com a pandemia sobrevinda, assim, exigiria governo estruturado segundo premissas que extrapolam aos interesses do mercado, não mais que o espaço onde se dão as trocas.

 

Ocorre que a sociedade tem muito mais espaços. Neles se travam, além das operações mercantis, outras de natureza e características diversas. Com certeza, nem todas elas envolvendo apenas a compra e venda em que tudo se está transformando. Até porque o bem mais importante para qualquer ser vivo é a própria vida. Exatamente esta é a que corre o maior risco, nos dias atuais.

 

Qual tem sido o falso dilema levantado pelos apóstolos do mercado e os agentes da necropolítica? Simplesmente, manter a desigualdade reinante, inclusive com o sacrifício de vidas humanas. Daí o desdém votado à Ciência, a repulsa aos defensores da vida humana, o amor ao lucro a qualquer custo.

 

Não bastam a esse tipo de gente as covas rasas onde sepultadas ficarão, junto com os corpos que a Covid-19 apanhou, as esperanças e os sonhos de toda uma nação. Desejam mais, e sem qualquer constrangimento, antes até com inadmissível ousadia, proclamar sua palavra de ordem: vão pra rua!

 

Será sempre oportuno lembrar Churchill, desta vez não para dizer da preferência dele pela democracia. Mas para dizer que ainda ecoam nos ouvidos dos que um dia deram ouvidos para algo que preste, as palavras que o ex-Premier britânico proferiu, antes do desembarque na Normandia. Ele dispunha, não obstante tantos defeitos que tinha dentro de si, da qualidade que não se veem entre os hipócritas, os covardes e os mentirosos. Não é o nosso caso, infelizmente para o Brasil.


*José Seráfico é professor aposentado da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Foto: Sergio Lima/AFP



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