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  22/04/2020 - por Luiz Fernando Souza Santos





Manaus, no contexto da pandemia de COVID-19 é um território de morte. Uma cidade onde em cada zona, em cada unidade de saúde, de uma unidade básica até o hospital de alta complexidade, há sinais de que o sistema hospitalar colapsou. Na TV e redes sociais, vídeos revelam o horror: corredores lotados de corpos e pacientes lutando contra a vida; imagens com dezenas de pessoas contaminadas num ambiente hospitalar que só tem três ventiladores e um está com defeito; falta de energia, falta de oxigênio, de equipamentos básicos para as equipes médicas; parentes de pacientes de outras doenças denunciam que não há possibilidade de atendimento.

 

Mas, como a cidade de Manaus chegou neste estado de caos, de colapso no seu sistema de saúde? Que condições estavam dadas desde antes da chegada do novo coronavírus e que potencializaram os efeitos sombrios destes?

 

Em primeiro lugar, há que se considerar que o Estado do Amazonas, do qual Manaus é a capital, sempre esteve sob o domínio do mesmo grupo político desde a reabertura política em fins da ditadura civil-militar. Este grupo com nomes como Gilberto Mestrinho, Amazonino Mendes, Alfredo Nascimento, Eduardo Braga, Omar Aziz, José Melo e outras personagens políticas de menor envergadura, jamais fizeram do SUS uma bandeira de alternativa efetiva de prestação de serviços de saúde à massa dos trabalhadores. Desse modo, as desigualdades socioeconômicas, jamais enfrentadas por esse grupo político, se desdobraram em desigualdades sanitárias que se expressam no fato de que a presença de médicos no Amazonas é uma das menores taxas do país desde a emergência do SUS. Soma-se a essa disposição política local, o fato de que as políticas de saúde do governo federal nunca tiveram institucionalização duradoura e capaz de lidar com as especificidades regionais. Assim, os serviços de media e alta complexidade ficaram concentrados em Manaus, deixando os municípios do interior à míngua e, agora, no contexto da pandemia da COVID-19, o colapso do sistema de saúde na capital amazonense significa, pois, o colapso da totalidade do mesmo no Estado do Amazonas.

 

 Em segundo lugar, é preciso levar em conta a pilhagem dos recursos públicos destinados à saúde através de esquemas criminosos. A Operação Maus Caminhos, da Polícia Federal, estourou em 2016 uma organização criminosa comandada pelo médico e empresário Mouhamad Moustafa, o governador do Estado à época, José Melo, a esposa deste, e outros agentes políticos (secretários de saúde) e agentes das empresas do primeiro. Juntos roubaram valores na ordem de 110 milhões de reais de recursos que deveriam ter sido empregados na saúde pública mas foram desviados para o enriquecimento ilícito. Durante uma greve de médicos e enfermeiros  em razão de atraso de pagamentos de salários, um áudio apreendido pela PF revela os comentários de bochados do empresário: “Lotada a manifestação dos médicos aqui na Compensa. Três médicos o resto tudo assessores do sindicato para fazer barulho. Acho até que vi a faxineira do sindicato de jaleco aqui para dar volume”. Os trabalhadores de saúde que fizeram manifestações em Manaus, no ano de 2015, e que foram alvo da ironia do empresário criminoso, agora lutam para combater a COVID-19 em condições hospitalares que são legados da cupinização dos recursos que deveriam ter sido destinados à saúde. Muitos desses médicos e enfermeiros estão contaminados  e alguns, inclusive, morreram nas últimas semanas.

 

Em terceiro lugar, temos a inclinação de grande parte dos moradores de Manaus para uma opção política reacionária. Tal opção, deve ser considerada no avanço contínuo das igrejas evangélicas na disputa por espaço na política institucional, elegendo vereadores, deputados estaduais e federais que sempre defendem pautas conservadoras, lgbtfóbicas, machistas, contra a classe trabalhadora. Esses grupos, mais os grupos conservadores ligados à Igreja Católica, e as forças policiais que aparelharam a educação através da criação de colégios militares da PM, foram ponta de lança na eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República em Manaus, que, em 2018, no segundo turno, deu 65,72% dos votos ao candidato eleito. Na Marcha para Jesus em 2019, 400 mil pessoas vestidas de verde e amarelo ocuparam as ruas da cidade “pela família e pelo Brasil”. No contexto da pandemia do novo coronavírus, é desse espectro de consciência política que sai o apoio à Bolsonaro em discursos contra o isolamento social, pela volta ao trabalho. No momento mesmo em que as taxas de contaminação e de mortes no Estado aumentam, os discursos do governo estadual e do prefeito em favor do isolamento, que a princípio pareciam estar surtindo efeito, implodiram com o chamado de Bolsonaro às ruas. O índice de isolamento social que chegou a ser de 64,2% caiu para 48% após Bolsonaro passar a contestar as orientações da Organização Mundial de Saúde e do seu Ministério de Saúde.

 

Em quarto lugar, segundo dados da PNAD do último trimestre de 2019, enquanto a taxa do país é de 40,9% de pessoas ocupadas mas na informalidade, em Manaus essa taxa é de 58,35%. A taxa de desocupação é de 19,4% (210 mil pessoas) da população, configurando a maior taxa do Brasil. O modelo Zona Franca de Manaus, que foi o pilar da economia local e, portanto da geração de emprego, com o processo de reestruturação produtiva e precarização do trabalho, já não é mais capaz de produzir as taxas de emprego de fins da década de 1980, quando haviam mais de 125 mil empregos diretos no Pólo Industrial de Manaus. Entre 2018 e 2019 o número de trabalhadores em regime de CLT caiu 6,7%, enquanto os temporários aumentaram 5,5% e os terceirizados 9,9%. Entre 2013 e 2018, os trabalhadores empregados foram de 121,6 mil para 87,7 mil e as empresas ali instaladas, neste mesmo período, foram de 480 para 450. O ano de 2020, já com o novo coronavírus se manifestando no mundo, vê a política do governo federal aprofundar o horizonte de desemprego em Manaus. A política de Bolsonaro para a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) atingiu empresas do polo de concentrados que podem sair da cidade fazendo desaparecer aproximadamente 7 mil postos de trabalho. As altas taxas de desocupação de Manaus indicam uma política estrutural na qual a lógica do capital contemporâneo, que circula sem freios pelo Planeta em direção das regiões mais favoráveis para a sua produção e reprodução, se impõe na sua face mais distorcida, deixando para trás uma cidade como efetiva terra arrasada. E Jair Bolsonaro é o timoneiro desse desmonte. Face a isso, o Plano de Renda Básica Emergencial, que prevê o repasse de 600 reais para trabalhadores informais, autônomos, sem renda fixa, por conta da crise decorrente da pandemia e por um período de três meses, aponta que o cenário de desemprego estrutural de Manaus coloca o desafio do país de reverter os desmontes que as contrarreformas impuseram ao mundo do trabalho e estabelecer um sistema social mais amplo e que sinalize em direção a um programa de renda básica que seja estruturante de um projeto de nação liberado do receituário destrutivo do neoliberalismo. Enquanto este debate não avança, filas quilométricas nas agências bancárias são formas para cadastramento no Plano de Renda Básica Emergencial. Centenas de pessoas se aglomeram na cidade que tem a maior taxa de incidência de infectados por milhão de habitantes do país.

 

Esses aspectos da realidade local não são hierárquicos entre si; formam momentos de uma mesma totalidade. E resultam num quadro trágico. No desenvolvimento desigual e combinado do país, o modo como o feixe de crise postos na crise sanitária ganha tons particulares, próprios de uma cidade erguida numa região cujos pilares de fundação da aventura capitalista se deu via acumulação primitiva de capital: com extermínio dos povos indígenas, caboclos, pobres, desde os primeiros momentos da chegada do europeu colonizador até os dias correntes. No contexto da pandemia do novo coronavírus, as velhas senhas da dominação despudorada se manifestam com sensação de impunidade.

 

No momento em que as taxas oficiais, marcadas pela subnotificação, só aumentam o número de contaminados e de mortos, com a totalidade do sistema de saúde na lona, sem máscaras, respiradores, leitos, e outros insumos, o governador do Amazonas, Wilson Lima, que é da base de apoio de Bolsonaro, faz pagamento de velhas dívidas de gestões anteriores num valor total de 736 milhões de reais. Em vez de equipar o hospital de referência no combate à COVID-19, o governo alugou o hospital desativado de uma faculdade particular. 28 ventiladores pulmonares foram comprados pelo valor de 2,9 milhões de reais, com dispensa de licitação e com sobrepreço de 316%.

 

Diante desses escândalos, a Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas (ALEAM) aprovou pedido de intervenção federal no estado. Vale ressaltar que o proponente de tal pedido é o Presidente da casa, Josué Neto, árduo defensor do bolsonarismo e pretenso candidato à Prefeitura de Manaus nas próximas eleições. No mesmo dia em que anunciou estar com coronavírus, o Presidente da ALEAM também comentou que é preciso garantir o isolamento social daqueles que estão no grupo de risco, mas, também, pensar alternativas para a economia.

 

Nas ruas, no dia 19 de abril, manifestantes saíram pedindo o fim do isolamento social, a volta ao trabalho e o impeachment do governador. Horas antes de tal ato, a polícia civil recebeu denúncias de que pessoas ligadas a essa manifestação pretendiam queimar carros e ônibus aumentando o caos na cidade. Apesar de localmente atacado pelos manifestantes, Wilson Lima se recusou a assinar a  carta dos governadores em defesa da democracia redigida após discurso do Presidente da República no ato em Brasília que pedia intervenção militar e fechamento do Congresso Nacional.

 

Num país com um presidente que nega toda estratégia de combate à COVID-19, num estado com um governador perdido, sem política efetiva para enfrentar a pandemia localmente, com uma Assembleia Legislativa se curvando ao seu Presidente bolsonarista, com uma parte da população a seguir fervorosamente as performances de ódio do “Mito” genocida, Manaus é a face mais distorcida de uma paisagem que a acda dia que passa vai se compondo de mais corpos sem vida.

 

Assim, nos dias correntes, em que o Planeta Terra atravessa a pandemia da COVID-19, Manaus, cidade localizada na Amazônia brasileira, é a síntese da profunda falha metabólica sob a ordem capitalista entre o homem e a natureza e falha da relação dos homens entre si. É a manifestação cínica, sem pudor, do alcance da destrutibilidade da exploração do homem pelo homem em busca da valorização de capital, lembra, nessas condições, a genial obra de Gabriel García Marquez, Cem Anos de Solidão. Manaus é Macondo, cidade em que governos autoritários impõem uma sombria necropolítica na escuridão dos dias na certeza de que, no futuro, ninguém acreditará que as forças do Estado mataram milhares dos seus habitantes.

 

É uma cidade distante dos grandes centros de decisão política e econômica. As metrópoles brasileiras, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte, não a entendem muito bem. Nova Iorque, Londres, Paris, Milão, Tokyo, se ouviram falar desta cidade, foi pelo exotismo do vale amazônico. E agora, porque é o palco do que pode resultar de mais pavoroso quando todas as instituições políticas falham no combate ao novo coronavírus. Nem suspeitam que esse não-saber sobre a cidade pode significar a impossibilidade de construírem algo de decisivo que seja diferente desta ordem destrutiva. Como apontou Karl Marx numa carta à Kugelman sobre aos nexos entre a condição da classe trabalhadora inglesa e da Irlanda, o reconhecimento das condições primárias de exploração do mundo natural e dos diversos grupos sociais, bem como a emancipação destes, que vivem na cidade amazônica, é condição para a emancipação no centro do capitalismo.

 

Não é possível ficar horrorizado à distância com o que ocorre em Manaus, pois ela é o mesmo dos grandes centros urbanos. Os contaminados e os mortos dizem respeito ao fracasso da totalidade do sistema econômico e do processo dito “civilizatório” imposto nos últimos cinco séculos e meio ao continente latino-americano, ao vale amazônico. Os dias em Manaus com corpos espalhados nos corredores de hospitais e centenas de pacientes aguardando a ocasião para irem ao encontro do não-ser, não são dias de uma cidade distante das grandes metrópoles. Como assinalou o Mouro de Trier, em O Capital, De Te Fabula Narratur! É sobre vocês, em grandes metrópoles, o que aqui foi escrito.

 

*Luiz Fernando de Souza Santos é sociólogo. É professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas.

 

Texto publicado originalmente em https://movimentorevista.com.br/2020/04/manaus-pandemia-e-barbarie/

 

Foto: Sandro Pereira



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