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  11/03/2020 - por José Alcimar de Oliveira





 

 

As redes sociais, hoje, favorecem a cultura da pressa, da disseminação compulsiva da tolice e da mentira sob medida. No sábio livro dos Provérbios, em que ciência e sabedoria se equivalem, há uma interrogação seguramente mais atual e necessária nesses tempos de pós ou autoverdade do que à época do Velho Testamento: "Até quando, insensatos, amareis a tolice, e os tolos odiarão a ciência" (Pv 1,22). 


O grande sábio espanhol, Baltasar Gracián (1601-1658), lido e elogiado por ninguém menos que Schopenhauer e Nietzsche, ensina que "a pressa é a paixão dos tolos, pois como não sabem dedicar tempo a pensar antes, agem sem prestar atenção e erram". Não creio que hoje há mais tolos do que nos tempos de Sócrates ou de Cristo. Mas algo é inegável: os dispositivos mediáticos do mundo e sobretudo do submundo das redes sociais deram aos tolos do século XXI um poder nunca visto na história dos mamíferos ditos humanos. 


Quanto aos mamíferos não humanos, por diligência e inteligência da natureza ou de Deus - e aqui sigo o Espinosa do Deus sive Natura -, foram sabiamente preservados desse poder. Nina, com sua sabedoria canina e que me honra com sua presença gratuita e fiel, nunca cedeu espaço à dissimulação da vontade pelas armadilhas da racionalidade. É um ser integralmente imune à mentira. Ela é o que é sem necessidade de ir além ou aquém do que lhe coube ser. 

 


Vive inteira e desenredada das redes mediáticas, presididas pela venalidade cognitiva. Muito anterior, mas não alheio ao que hoje significa o império digital, o Apóstolo Paulo, e numa referência bíblica que só ocorre uma única vez, teve - em minha discutível exegese - uma intuição algo benjaminiana e visionária ao denunciar as artimanhas do que ele definia como "príncipe do poder do ar" (Ef 2,2). 


Penso que nem por improvável e antecipatória leitura psicográfica teve o Apóstolo Paulo contato com a obra de Umberto Eco (1932-2016). Mas que o conceito de "príncipe do poder do ar" intriga, disso não duvido. Se não a muitos, a mim pelo menos.  As redes sociais criaram ou favoreceram a emergência do imbecil digital, cuja inteligência migrou da caixa encefálica para as extremidades digitais, o que implica, por força da exiguidade de espaço anatômico, inevitável redução de massa cognitiva. Não tenho base empírica sobre o que seria cognição digital. 


Fico com o Mouro de Trier para quem o tempo deveria ser o espaço da formação humana, algo incompativel com a vida apressada do imbecil digital. O imbecil digital tem pressa e abomina mediações. Adorno, há mais de 50 anos, nos deixou uma definição redonda do imbecil digital: é aquele que vive do cultivo de si mesmo sem si mesmo. Ele odeia a reflexão e, em sua indigência cognitiva, transforma em imediato o que mais mediato é. O rabino, filósofo e crítico Adin Steinsaltz, nascido em 1937, que enfrentou o desafio de traduzir para o hebraico moderno as cerca de cinco mil páginas da sabedoria do Talmud, nos dá a exata e cartesiana medida da insanidade atual: "Nós temos mais poder do que bom senso". 


No início do incontornável Discurso do método, escrito por Descartes em 1637, pensador francês  contemporâneo ao pensador espanhol Baltasar Gracián, está impressa de forma lapidar a sábia e necessária sentença: "o bom senso é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa, não costumam desejar tê-lo mais do que o têm". O bom senso é a mais sábia das medidas da vida do ser social.


José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em  Manaus, AM, 10 de março de 2020.



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