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  02/03/2020 - por #





O Jornal A Crítica, que possui um bom quadro de jornalistas, mas uma política editorial conservadora, por :vezes reacionária, comemora a reintegração de posse da área nomeada por Monte Horebe. A manchete diz: "Governo irá desocupar invasão Monte Horebe: bandidos serão tratados como tal". Não importa, aqui, o que o governo quis dizer em seu discurso, mas como o jornal o apresenta, pois é uma síntese de como as elites locais enxergam a gente que vive na periferia e não tem um teto para sossegar: é tudo bandido. Durante os últimos dois anos se intensificaram os exercícios raivosos de desconstrução de qualquer sentido de luta por moradia no Monte Horebe. No rádio, na TV, no Uber, no jornal, na roda de conversa entre amigos, na família, na Universidade, aquele aparece sempre como lugar de bandidos, de crimes, mortes, desovas. De tanto baterem nessa tecla, finalmente um juiz que nunca proferiu no Amazonas um parecer favorável aos fodidos locais, determina a reintegração de posse. Manaus, o lado dos insiders, respira aliviada.


E uma cidade escrota assim, segregacionista, miserável na construção de política habitacional para os populares, nunca vai saber da gente bonita e suas táticas de luta, de resistência, no Monte Horebe. Não vai ouvir falar do Júlio, da Bia, da Michele, e de tantas outras e outros que organizam a resistência como ser em-si e para-si.


Não verá a solidariedade dos debaixo para garantir remédio aos doentes, comida para quem não tem, educação para jovens e adultos. Não saberá das refeições comunitárias num barracão construído no meio de casebres frágeis, e que sempre tinha um prato a mais para quem era de fora.


Não verá aquela Babel dos pobres, de etnias diversas, de línguas múltiplas. Andar pelo Monte Horebe é andar por uma comunidade de gente que fala Nheengatu, português, espanhol, inglês, crioulo, etc. Lá, encontrei uma jovem professora - nascida como professora na pedagogia forjada na contradição da materialidade do lugar- que ensinava, em embaixo de uma frondosa árvore, o português para os haitianos e o crioulo para os brasileiros. Mas a Manaus reacionária não verá nada disso.


Conversar com os moradores do lugar é ouvir histórias que o jornalismo de A Crítica nunca quis ouvir. Nos celulares dos moradores há imagens em vídeo da polícia entrando na calada da noite e tocando o terror. Tiros, gritos, crianças chorando. Há histórias de milicianos a serviço de um certo ex-deputado federal que tem interesse em empreendimento imobiliário ali. Há histórias sobre questionários da política social aplicados aos moradores do lugar, que catalogaram todas as famílias e, misteriosamente, foram parar nas mãos de milicianos e nas forças de repressão estatal.


E há a história da Michele. Haitiana, veio para Manaus na imigração que ocorreu após o último grande terremoto e os horrores da MINUSTAH. Na capital amazonense, se envolveu com a organização dos haitianos e a participação em frentes de luta popular. Nas marchas em defesa da educação, ela estava sempre presente. Na Ufam, na sede do sindicato docente participou de debates sobre a resistência popular. Até que ela sumiu. Os moradores contam uma história pavorosa, de uma noite em que milicianos invadiram a casa dela, a torturaram, e a fizeram desaparecer. Nenhuma nota em jornal ou rádio foi publicada, nenhum B.O. registrado. O governo brasileiro e a embaixada ou consulado do Haiti não sabem da história de Michele.


Tenho uma foto com essa gente de luta no Monte Horebe. Michele olha para trás. Chama o povo para apressar o passo. Não há tempo a perder na construção de trincheiras para a resistência. Quero pensar que essa imagem fica como inspiração para as mulheres e homens que lutam por moradia popular em Manaus. As forças de destruição podem ter dado um fim em Michele, mas seu chamado para apressar o passo ficou. E nenhuma manchete raivosa de um jornal local vai apagar esse chamado. Pois o Monte Horebe já não é apenas um território fisicamente localizado. Ele está nas centenas de ocupações existentes em Manaus a denunciar o abandono do povo pobre pelo poder público, o fracasso de política social de uma cidade que tem ódio-pânico dos estruturalmente periféricos.


Michele chama a Manaus invisibilizada para apressar o passo. Monte Horebe resiste!

 

* Luiz Fernando de Souza Santos é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas e I Vice-Presidente da ADUA-S.Sindical



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