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  23/01/2020 - por José Seráfico





 

“Foram longos, aqueles dias. Muito longos. Eles mostraram que o medo da força do inimigo é incomparavelmente menor que o pavor do desconhecido.”

José Seráfico (“Memórias talvez precoces”)

 

Os dias que vivemos, quase sempre repetição enfadonha e absurda de tempos vividos antes, despertam em cada um reações nem sempre razoáveis. Não estivéssemos em uma era inspiradora mais de Poe e Ionesco que de Graciliano ou Saramago.

 

Uns dirão tratar-se de época em que a realidade virtual produzida pelo avanço tecnológico faz submergir a realidade real, aquela que o Iluminismo pensava ter descoberto para sempre. Hoje, vê-se, não é bem assim.

 

Habitado por mensagens reais sobre fatos falsos (fake news, para os que preferem o idioma do colonizador), chega diante de nós um mundo diferente do que os olhos veem, o olfato aspira, os ouvidos ouvem, o tato percebe e o paladar degusta. Mais do que nunca, percebe-se quanto a versão ganha o lugar do fato. A coisa, não é o que se pensa a respeito dela, já não mais interessa. Pior, ainda, quando não há pensamento – menos reflexão, ainda. Assim, a pequena mentira ganha status de verdade; o boato substitui a análise criteriosa; a ânsia por ganhar corações e mentes perverte-se, corrompe-se, anula qualquer tentativa de fazermo-nos melhores. E fazer melhor a sociedade por nós mesmos construída.

 

Fica fácil disseminar o que frequenta nossa cabeça, sem que haja a mínima exigência e o menor respeito à realidade dos fatos, às relações que os produziram, às consequências que poderão determinar.

 

Neste particular aspecto, jamais será fastidioso e demasiado lembrar Goebbels: “Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”.

 

Faz mais de 50 anos, propalava-se pelas ruas brasileiras a iminência da implantação do comunismo no País. As ruas foram tomadas de supostos praticantes da religião cristã, insuflados pelos que se diziam defensores da democracia e acobertados pela grande imprensa. Assim foram evitadas as reformas de base propostas pelo fazendeiro e latifundiário João Goulart, com a intenção – não mais que isso – de modernizar as relações entre o capital e o trabalho. Tudo, sem arranhar sequer a estrutura capitalista vigente.

 

Era, de fato, risco muito grande para o capital. Seus lucros seriam reduzidos, mesmo que mantidos em patamar mais que suficiente para gerar a acumulação que se registra.

 

Os “defensores” de Cristo, da democracia, da família e da Pátria conseguiram o seu intento, tanto que a desigualdade só aumentou, de lá até aqui. Também se aprofundou o ódio, talvez arma de maior eficácia, na sociedade que tão bem Hobbes anunciou: “Homo lupus homini”.

 

Lobos têm vida longa, o homem nem sempre. Por isso, no limiar da sexta década post-facto, estamos diante de espetáculo que só não traz a sensação do déja vu porque os protagonistas são outros. Suas armas, também.

 

A diversidade, porém, está apenas no plano individual, porque coletivamente, as classes sociais dominantes permanecem estancadas, instaladas em seus redutos, imunes a qualquer movimento que não seja propício aos seus bons negócios. Imaginar que o ódio resulte em algo diferente é render homenagem ao teatro do absurdo.

 

A rapidez e a abrangência alcançadas pelas redes (anti)sociais, que muitos imaginaram benéficas à maioria, têm servido, sobretudo, para realizar o sonho do Ministro da Informação de Adolph Hitler.

 

Fica mais difícil, portanto, conhecer o mundo, mesmo se maior a quantidade de informações sobre ele. Como se reduz a possibilidade de pensar com a própria cabeça. O pensamento está proibido. A desvantagem adicional vem do fato de que, sempre que o pensamento é coagido, os neurônios se tornam preguiçosos. O mais grave, porém, é quando as mensagens partem de quem se duvida que tenha capacidade de pensar.

 

Difíceis, mesmo, estes dias!

 

José Seráfico, Faculdade de Estudos Sociais, Universidade Federal do Amazonas (UFAM)

 



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