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  14/01/2020 - por Osvaldo Coggiola





Apresentação

 


Como parte das comemorações pelos seus 40 anos de resistência na defesa dos direitos das/os docentes de ensino superior, a atual direção da ADUA-SSind. decidiu criar uma revista dedicada à reflexão crítica sobre o nosso país, a nossa sociedade e a nossa Universidade, uma revista de estudos e debates sobre o nosso tempo e os temas que nos dizem respeito.

 


Nesse sentido, o nome da nossa revista não poderia ser outro: Resistências – Revista da ADUA, afirmando o papel do nosso sindicato e de cada um de nós como sujeitos políticos críticos no mundo e resistentes no tempo em que vivemos.

 


Para este primeiro número, o tema escolhido foi Ecos e permanência da Ditadura na Amazônia. Com esse tema, Resistências aprofunda o debate sobre o atual momento político que vive o Brasil, inegavelmente um momento delicado, marcado por permanente crise política que se arrasta já há vários anos, colocando em risco tanto as instituições nacionais como as próprias condições de vida em sociedade.

 


Evidentemente a escolha deste tema não foi gratuita. Inegavelmente podemos caracterizar o governo Bolsonaro e os interesses que se uniram para levá-lo ao poder como uma reedição da Ditadura de 1964-1985, uma Ditadura Reeditada, inquestionavelmente piorada, se é que pode alguma ditadura ser considerada como melhor que outra.

 


Vale a pena lembrar as palavras de Florestan Fernandes em seu artigo “O significado da ditadura militar”, publicado em 1997, ao analisar as alianças de interesses que levaram ao golpe de 1964, palavras premonitórias e incrivelmente oportunas para descrever os dias atuais em nosso país: “[...] Os fios da contrarrevolução chegam aos nossos dias e de uma perspectiva militar que empobrece e inquieta as próprias forças armadas. [...] A ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se.[...] A hegemonia militar perde [perdeu] terreno. A posição estratégica das elites militares – antigas ou renovadas – adquire, todavia, perspectivas de duração e de influência ultracompensadoras. Aquelas elites fixam-se ainda mais como esteio da defesa da ordem. Em suma, elas desprenderam-se da batalha militar (que não ultrapassou a encenação e alguns combates singulares), mas ganharam a guerra política. [...]” (Fernandes, 1997, 147-148).

 


Se hoje podemos dizer que vivemos uma ditadura disfarçada, devemos reconhecer que essa é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, uma vez que a concepção de país e sociedade que têm os militares hoje no poder, e os civis que a eles se aliam, é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, que levou o país aos desastrosos 21 anos Regime Militar e Ditadura.

 


Em sua maioria, os artigos reunidos neste nº 1 de Resistências foram escritos por colegas docentes da Ufam e outras Universidades, que responderam à “chamada para artigo” de parte da ADUA. Os 28 artigos aqui reunidos apresentam formatos diversos – ensaios, testemunhos, artigos de opinião e artigos acadêmicos – conformando quatro seções:

 


- Abrindo o Debate, seção especial com o mencionado artigo de Florestan, que, atualíssimo, lança luzes sobre o atual contexto político brasileiro;
- Ecos da Ditadura na Amazônia, artigos que discutem o impacto e efeitos da Ditadura na formação pessoal e da sociedade local amazonense;
- Permanências da Ditadura, artigos que analisam a herança do Regime Militar e da Ditadura ainda hoje presentes na vida nacional.
- A Ditadura Reeditada, seção especial com o artigo “Conspiração e corrupção: uma hipótese muito provável”, de José Luís Fiori e William Nozaki, que explicita antigos interesses sempre renovados, que constrangem a política nacional à “conspiração” por regimes de exceção, que assinala estratégias, sempre renovadas, de perpetuação da subordinação nacional a interesses imperialistas.

 

 

Com Resistências, a Diretoria da ADUA convida à reflexão crítica sobre o tempo em que vivemos, condição indispensável para a construção de uma sociedade mais justa, que acreditamos seja o propósito de todos nós docentes, sindicalizados ou não.
 

 

Boa leitura a todas e a todos!

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O Fim das Ditaduras na América Latina

 

Na América Latina, a transição política para regimes civis foi motivada pelo esgotamento econômico e político dos regimes militares, no quadro de uma crise econômica mundial: a “crise das dívidas”, em 1982, evidenciara a incapacidade desses regimes em continuar pagando a dívida externa mediante os métodos econômicos e políticos vigentes. A política democratizante foi impulsionada pelos Estados Unidos da América e surgiu no bojo dos problemas criados pela crise política mundial: ela foi impulsionada pelo governo Reagan (1980-1988) depois das derrotas norte-americanas nas guerras do Vietnã e do Sudeste asiático, e da revolução nicaraguense. Explicitando o sentido da mudança política afirmou um documento oficial dos EUA: “O autoritarismo de extrema direita tem sido um importante fator que contribuiu para uma nova e crescente ameaça à democracia: a ameaça do totalitarismo comunista... O apoio à democracia, a própria essência da sociedade americana, está se tornando o novo princípio em torno do qual se organiza a política externa norte-americana. O apoio à democracia promove os interesses dos Estados Unidos de várias formas importantes. A democracia ajuda a garantir a segurança dos Estados Unidos. Os governos democráticos, precisamente porque devem ser sensíveis aos desejos dos seus povos, tendem a serem bons vizinhos. A competição política aberta e regular diminui a polarização e as extremas oscilações do pêndulo (como aconteceu no Chile, em Cuba e na Nicarágua) e torna as nações mais resistentes à subversão. Os governos democráticos são mais confiáveis como signatários de acordos e tratados porque seus atos são sujeitos ao exame do público. A democracia também favorece importantes interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos” (grifo nosso).  Essa política visava resolver a contradição entre a necessidade de uma política intervencionista, e a de manobras diante da crise econômica e a tendência ascendente do movimento operário e popular latino-americano. Ela capitalizou o entrelaçamento inédito das burguesias nacionais latino-americanas com o capital financeiro internacional. 


A passagem das ditaduras militares para regimes democráticos, na América do Sul, foi um processo de complexas dimensões: não se esperava apenas a mudança das normas políticas, mas também a afirmação independente das nações latino-americanas (ou a “verdadeira” constituição das mesmas), assim como o combate às desigualdades sociais. Do ponto de vista estritamente político, não se tratava da volta ao statu quo ante, nem da simples reedição das alianças políticas e de classe existentes antes do “interregno” militar. Isto era particularmente válido para o Brasil, o país, dentre o conjunto da América Latina, que produzira a maior e mais densa tradição crítica quanto aos rumos seguidos desde a sua constituição como sociedade independente, em todos seus aspectos – econômicos, sociais, políticos, culturais –, com um embasamento predominantemente nacionalista.   Em pouco tempo, os rumos seguidos pelos governos civis latino-americanos começaram a desfazer a ilusão de se atingir os objetivos sociais e nacionais por meio de mudanças só políticas, sem tocar nas relações de propriedade. Não se pôs em questão o pagamento da dívida externa, diante das exauridas reservas nacionais. Os governos aceitaram o princípio da “capitalização da dívida’’, liquidando o aparelho produtivo, e entregando, em troca dos títulos desvalorizados da dívida, aceitos por seu valor nominal ou de face, o patrimônio nacional: no Brasil, o governo civil acabou com a reserva de mercado para os setores estratégicos (informática, petroquímica); na Argentina foram privatizadas as linhas aéreas e todo o sistema de comunicações. Os “modelos” desse “liberalismo modernizante” (Chile e Bolívia) falaram por ele. No Chile, em 1965, 96% das exportações estavam compostas por matérias-primas; em 1986 (depois de 13 anos de “liberalismo” pinochetiano), essa percentagem era ainda de 92%, a diferença de 4% era produto da lenta recuperação da desindustrialização operada entre 1973 e 1986, que elevara o desemprego de 4,7% a 25,7%. 


A estrutura do atraso econômico relativo da América Latina se aprofundou. Na Bolívia, o desemprego, em certos setores, chegou a 75%, com os antigos trabalhadores mineiros transformados em nômades, que se deslocavam em barracas à procura de emprego, enquanto a massa camponesa viu-se obrigada a sobreviver com a plantação de coca. O estanho só produzia US$ 70 milhões anuais, enquanto as exportações de pasta de cocaína se elevaram até US$ 600 milhões. Na Argentina, triplicou o número de pobres. No México, o avanço do latifúndio e a crise industrial fizeram com que os trabalhadores agrícolas sem-terra passassem de 1,5 milhão em 1950 (30% da força de trabalho) para mais de seis milhões (60%), preparando uma crise agrária que explodiria na década de 1990. A América Latina, que detinha 12% das exportações mundiais em 1950, passou para 5,4% em 1975, e para 4% em 1990.  Simultaneamente, diante da crise mundial e da perda de posições pelos EUA, Paul Volcker, presidente do Federal Reserve Bank (banco central norte-americano), em outubro de 1979, por meio de um choque monetário e financeiro, elevou os juros básicos da economia americana (que estavam em torno de 4% ao ano) para 19%, provocando a “crise das dívidas externas” da década de 1980. Vários países da América Latina e África foram à bancarrota. O primeiro foi o México em 1982; o Brasil, em 1983, foi obrigado a dar um “calote técnico”; recebendo em seguida a visita do Fundo Monetário Internacional (FMI). Em apenas três anos (1981 a 1983), a América Latina pagou US$ 81,7 bilhões em conceito de serviço da dívida, o dobro do que pagara na década de 1970. Em 1982, o governo mexicano não conseguiu continuar pagando a dívida e declarou moratória. Os banqueiros privados internacionais reagiram interrompendo os créditos para os países devedores, inviabilizando a rolagem da dívida e buscando que o FMI assegurasse o pagamento da dívida externa, com sua reprogramação e refinanciamento: criado com a função básica de fornecer recursos financeiros para os países que apresentassem déficits nas contas externas, o FMI passou a ser um órgão gerenciador dos países endividados, utilizando “cartas de intenções” para implementar programas de ajuste.


A deterioração do nível de vida dos trabalhadores era palpável. Em toda a América Latina, na década de 1980, a “década perdida”, a renda per capita caíra aos níveis de 1970; o retrocesso econômico, com queda absoluta do Produto Interno Burto (PIB) (-1% para todo o continente) coexistiu com o crescimento demográfico, determinando uma queda maior ainda da renda per capita (que não chega a medir a queda real do nível de vida, devido ao avanço da concentração de renda); o investimento caiu de 25% do PIB (na década de 1970) para 16% em 1987; a inflação estava fora de controle; a dívida externa continental pulou de US$ 100 bilhões em 1980 para US$ 420 bilhões em 1989; a produção de alimentos caiu em 17 dos 23 países latino-americanos entre 1981 e 1987. No Brasil, enquanto o crescimento anual médio do PIB atingira uma média de 7,1% anual no período 1947/1980, essa taxa se reduziu para 1,6% nos anos 1980.  A crise econômica e a deterioração social produziram as condições de uma crescente irrupção popular que, junto com aquela crise, criou a necessidade imperativa do fim dos regimes militares.

 

Osvaldo Coggiola, Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), coggiola@usp.br



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