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  06/01/2020 - por Rodrigo Oliveira Braga Reis





Apresentação

 


Como parte das comemorações pelos seus 40 anos de resistência na defesa dos direitos das/os docentes de ensino superior, a atual direção da ADUA-SSind. decidiu criar uma revista dedicada à reflexão crítica sobre o nosso país, a nossa sociedade e a nossa Universidade, uma revista de estudos e debates sobre o nosso tempo e os temas que nos dizem respeito.

 


Nesse sentido, o nome da nossa revista não poderia ser outro: Resistências – Revista da ADUA, afirmando o papel do nosso sindicato e de cada um de nós como sujeitos políticos críticos no mundo e resistentes no tempo em que vivemos.

 


Para este primeiro número, o tema escolhido foi Ecos e permanência da Ditadura na Amazônia. Com esse tema, Resistências aprofunda o debate sobre o atual momento político que vive o Brasil, inegavelmente um momento delicado, marcado por permanente crise política que se arrasta já há vários anos, colocando em risco tanto as instituições nacionais como as próprias condições de vida em sociedade.

 


Evidentemente a escolha deste tema não foi gratuita. Inegavelmente podemos caracterizar o governo Bolsonaro e os interesses que se uniram para levá-lo ao poder como uma reedição da Ditadura de 1964-1985, uma Ditadura Reeditada, inquestionavelmente piorada, se é que pode alguma ditadura ser considerada como melhor que outra.

 


Vale a pena lembrar as palavras de Florestan Fernandes em seu artigo “O significado da ditadura militar”, publicado em 1997, ao analisar as alianças de interesses que levaram ao golpe de 1964, palavras premonitórias e incrivelmente oportunas para descrever os dias atuais em nosso país: “[...] Os fios da contrarrevolução chegam aos nossos dias e de uma perspectiva militar que empobrece e inquieta as próprias forças armadas. [...] A ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se.[...] A hegemonia militar perde [perdeu] terreno. A posição estratégica das elites militares – antigas ou renovadas – adquire, todavia, perspectivas de duração e de influência ultracompensadoras. Aquelas elites fixam-se ainda mais como esteio da defesa da ordem. Em suma, elas desprenderam-se da batalha militar (que não ultrapassou a encenação e alguns combates singulares), mas ganharam a guerra política. [...]” (Fernandes, 1997, 147-148).

 


Se hoje podemos dizer que vivemos uma ditadura disfarçada, devemos reconhecer que essa é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, uma vez que a concepção de país e sociedade que têm os militares hoje no poder, e os civis que a eles se aliam, é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, que levou o país aos desastrosos 21 anos Regime Militar e Ditadura.

 


Em sua maioria, os artigos reunidos neste nº 1 de Resistências foram escritos por colegas docentes da Ufam e outras Universidades, que responderam à “chamada para artigo” de parte da ADUA. Os 28 artigos aqui reunidos apresentam formatos diversos – ensaios, testemunhos, artigos de opinião e artigos acadêmicos – conformando quatro seções:

 


- Abrindo o Debate, seção especial com o mencionado artigo de Florestan, que, atualíssimo, lança luzes sobre o atual contexto político brasileiro;
- Ecos da Ditadura na Amazônia, artigos que discutem o impacto e efeitos da Ditadura na formação pessoal e da sociedade local amazonense;
- Permanências da Ditadura, artigos que analisam a herança do Regime Militar e da Ditadura ainda hoje presentes na vida nacional.
- A Ditadura Reeditada, seção especial com o artigo “Conspiração e corrupção: uma hipótese muito provável”, de José Luís Fiori e William Nozaki, que explicita antigos interesses sempre renovados, que constrangem a política nacional à “conspiração” por regimes de exceção, que assinala estratégias, sempre renovadas, de perpetuação da subordinação nacional a interesses imperialistas.

 

 

Com Resistências, a Diretoria da ADUA convida à reflexão crítica sobre o tempo em que vivemos, condição indispensável para a construção de uma sociedade mais justa, que acreditamos seja o propósito de todos nós docentes, sindicalizados ou não.
 

 

Boa leitura a todas e a todos!

 

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Povos do Vale do Javari e a Ditadura Civil-Militar

Ainda que uma grande parcela da população brasileira desconheça, ou faça de conta que desconrheça, vários foram os casos de violência contra os povos indígenas durante a vigência da Ditadura Civil-Militar no país. Referências sobre as agressões cometidas contra estes povos são encontradas, na maioria das vezes, em relatos sobre grandes empreendimentos, como a abertura da Rodovia Transamazônica BR-230 ou a construção das hidrelétricas de Itaipu , localizada no Rio Paraná, na fronteira entre o Brasil e o Paraguai, e a de Tucuruí, localizada no município de mesmo nome, no estado do Pará.

 

 


Investigações conduzidas pela Comissão Nacional da Verdade recentemente trouxeram à luz informações que demonstram a violência extrema cometida contra estes povos. A estimativa da referida Comissão nos aponta para um verdadeiro genocídio: ao menos 8.350 índios foram assassinados entre 1946 e 1988. Se antes do Ato Institucional Nº 5 (AI-5) os massacres eram atribuídos à omissão do Estado, após a decretação do mesmo, em 1968, as investigações revelam que o grande responsável pelos homicídios foi o próprio regime militar.

 

 


No sudoeste do Amazonas, na fronteira Brasil-Peru, está localizada a terceira maior Terra Indígena (TI) do país, a Vale do Javari. Abrangendo uma área de 8.544.448 hectares, na qual vivem cerca de 5.481 indígenas (SESAI, 2013) das etnias: Kanamari, Korubo, Kulina, Marubo, Matis, Matsés , além de grupos isolados/autônomos localizados no Alto Rio Jutaí, no Rio Jandiatuba e no Rio Quixito. Nessa Terra Indígena, a violência do período ditatorial está marcada nos territórios e nas memórias de seus habitantes.

 

 


O projeto econômico desenvolvimentista e o discurso de “integrar para não entregar” que orientava diversas ações de forte impacto em outras partes da Amazônia vigoraram nesta região a partir de, pelo menos, duas iniciativas: a construção da Rodovia Perimetral Norte (BR 307) e as ações de prospecção da Petrobras. A Rodovia atravessaria os territórios dos povos que habitavam a região até o município de Cruzeiro do Sul (Acre) e mobilizou a ação de indigenistas e a instalação da Fundação Nacional do Índio (Funai) na região a partir do ano de 1971.

 

 


A Petrobras realizou ações de prospecção em diferentes pontos do Vale do Javari nas décadas de 1970 e 1980, tais ações compreendiam a abertura de picadas e inúmeras detonações para pesquisa sismográfica (CEDI, 1981; Coutinho Jr., 1998). Em um caso relatado por indígenas do povo Matsés e por um ex-funcionário de uma das companhias que prestaram serviços para a Petrobras, os explosivos também foram utilizados para “amansar os índios”. Assim, após fugas e eventuais confrontos na região conhecida como Alto Jaquirana, a utilização de explosivos amedrontou um segmento do povo Matsés forçando-os a estabelecer “contato pacífico” com os trabalhadores da companhia.

 

 

Entre 1983 e 1985, a Petrobras atuou nos territórios de povos isolados do Jandiatuba e do Itacoaí, causando uma série de confrontos que resultaram em mortes de indígenas e de trabalhadores a serviço desta empresa. Relatos sobre os ataques e mortes, assim como a denúncia sobre as operações do governo para silenciar as situações de violência, foram feitos por indigenistas que atuavam na região e publicados na edição de 1984 de Povos Indígenas no Brasil (CEDI, 1984). Também sobre a atuação da Petrobras nos territórios de isolados do Jandiatuba, o sertanista Sidney Possuelo relata:

 

 


[...] A movimentação de helicópteros, abertura de dezenas de clareiras, o barulho de centenas de explosões, formaram um quadro de tal forma agressivo aos grupos arredios, motivo que determinou o abandono de suas roças e a queima de malocas. Concluindo, informo que tais trabalhos se constituíram em violenta agressão que desorganiza, amedronta e afugenta os grupos arredios de tal forma que não devem se repetir. [...] Não devemos pois permitir pura e simplesmente a entrada da PETROBRÁS (sic.) em terras habitadas por grupos arredios. (Possuelo, 1984).

 


Outras situações de violência também constituem os relatos de indígenas sobre este período. Alguns remontam ao envolvimento de funcionários da Funai na exploração ilegal de madeira e de militares em expedições punitivas conhecidas regionalmente como correrias. Apesar de que já existia proposta para criação do Parque Indígena do Vale do Javari em tramitação desde o início dos anos 1970, relatos deste período indicam a forte presença de madeireiros nesta região e a omissão da agência indigenista, favorecendo a atuação predatória sobre os territórios indígenas e os confrontos violentos entre indígenas e não-indígenas.

 

Página infeliz da nossa história sobre a qual devemos nos aprofundar para a devida reparação a estes povos e para que não sejamos vencidos pela produção oficial dos esquecimentos.

 

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Especial de Saúde Indígena. Dados Populacionais de 2013 das Etnias cadastradas no SIASI por Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Disponível em: http://dw.saude.gov.br/gsid/servlet/mstrWeb 

Dados Populacionais de 2013 das Etnias cadastradas no SIASI por Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Disponível em: http://dw.saude.gov.br/gsid/servlet/mstrWeb - CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação).

Povos Indígenas no Brasil. São Paulo, 1981, volume 5 (Javari).

CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação). Povos Indígenas no Brasil. São Paulo, 1984.

Coutinho Jr., W. Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Vale do Javari. Brasília: FUNAI, 1998.

Possuelo, Sidney. Relatório sobre os trabalhos da Petrobras no Alto Solimões. Brasília: FUNAI, 05 de novembro de 1984.

 

Rodrigo Oliveira Braga Reis, Instituto de Natureza e Cultura (INC), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), roliveiraam@gmail.com.



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