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  18/12/2019 - por José Alcimar de Oliveira





Apresentação


Como parte das comemorações pelos seus 40 anos de resistência na defesa dos direitos das/os docentes de ensino superior, a atual direção da ADUA-SSind. decidiu criar uma revista dedicada à reflexão crítica sobre o nosso país, a nossa sociedade e a nossa Universidade, uma revista de estudos e debates sobre o nosso tempo e os temas que nos dizem respeito.


Nesse sentido, o nome da nossa revista não poderia ser outro: Resistências – Revista da ADUA, afirmando o papel do nosso sindicato e de cada um de nós como sujeitos políticos críticos no mundo e resistentes no tempo em que vivemos.


Para este primeiro número, o tema escolhido foi Ecos e permanência da Ditadura na Amazônia. Com esse tema, Resistências aprofunda o debate sobre o atual momento político que vive o Brasil, inegavelmente um momento delicado, marcado por permanente crise política que se arrasta já há vários anos, colocando em risco tanto as instituições nacionais como as próprias condições de vida em sociedade.


Evidentemente a escolha deste tema não foi gratuita. Inegavelmente podemos caracterizar o governo Bolsonaro e os interesses que se uniram para levá-lo ao poder como uma reedição da Ditadura de 1964-1985, uma Ditadura Reeditada, inquestionavelmente piorada, se é que pode alguma ditadura ser considerada como melhor que outra.


Vale a pena lembrar as palavras de Florestan Fernandes em seu artigo “O significado da ditadura militar”, publicado em 1997, ao analisar as alianças de interesses que levaram ao golpe de 1964, palavras premonitórias e incrivelmente oportunas para descrever os dias atuais em nosso país: “[...] Os fios da contrarrevolução chegam aos nossos dias e de uma perspectiva militar que empobrece e inquieta as próprias forças armadas. [...] A ditadura, como constelação social de um bloco histórico de estratos militares e civis, não se.[...] A hegemonia militar perde [perdeu] terreno. A posição estratégica das elites militares – antigas ou renovadas – adquire, todavia, perspectivas de duração e de influência ultracompensadoras. Aquelas elites fixam-se ainda mais como esteio da defesa da ordem. Em suma, elas desprenderam-se da batalha militar (que não ultrapassou a encenação e alguns combates singulares), mas ganharam a guerra política. [...]” (Fernandes, 1997, 147-148).


Se hoje podemos dizer que vivemos uma ditadura disfarçada, devemos reconhecer que essa é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, uma vez que a concepção de país e sociedade que têm os militares hoje no poder, e os civis que a eles se aliam, é ainda pior, ainda mais “pobre” do que a de 1964, que levou o país aos desastrosos 21 anos Regime Militar e Ditadura.


Em sua maioria, os artigos reunidos neste nº 1 de Resistências foram escritos por colegas docentes da Ufam e outras Universidades, que responderam à “chamada para artigo” de parte da ADUA. Os 28 artigos aqui reunidos apresentam formatos diversos – ensaios, testemunhos, artigos de opinião e artigos acadêmicos – conformando quatro seções:


- Abrindo o Debate, seção especial com o mencionado artigo de Florestan, que, atualíssimo, lança luzes sobre o atual contexto político brasileiro;
Ecos da Ditadura na Amazônia, artigos que discutem o impacto e efeitos da Ditadura na formação pessoal e da sociedade local amazonense;
Permanências da Ditadura, artigos que analisam a herança do Regime Militar e da Ditadura ainda hoje presentes na vida nacional.
- A Ditadura Reeditada, seção especial com o artigo “Conspiração e corrupção: uma hipótese muito provável”, de José Luís Fiori e William Nozaki, que explicita antigos interesses sempre renovados, que constrangem a política nacional à “conspiração” por regimes de exceção, que assinala estratégias, sempre renovadas, de perpetuação da subordinação nacional a interesses imperialistas.

 

Com Resistências, a Diretoria da ADUA convida à reflexão crítica sobre o tempo em que vivemos, condição indispensável para a construção de uma sociedade mais justa, que acreditamos seja o propósito de todos nós docentes, sindicalizados ou não.
 

Boa leitura a todas e a todos!

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1964. 55 anos depois, como tragédia, farsa e escárnio

Quando foi desencadeado o golpe de 1º de abril de 1964, eu tinha 7 anos e morava na cidade de Jaguaruana, Ceará, às margens do maior rio seco do mundo, o Jaguaribe. Morava, igualmente, às margens da história e da geografia, do tempo e do espaço e, criança pobre, ouvia com temor e sem nada compreender o que outros diziam ter escutado no rádio de válvulas e a pilha (dispositivo fora das nossas posses familiares): o fantasma do comunismo rondava o sertão e, por dentro dos carnaubais, numa carruagem de tração bovina, homens encapuzados e armados levavam as crianças para delas vampirizar o sangue já pouco e anêmico. À miséria da existência cercada pelas cercas do capital e do latifúndio – menos do que pela seca –, somava-se o medo, funcional ontem e hoje, da abrangente, aterradora e socialmente propalada ameaça comunista.


O comunismo era como a palavra “câncer”, que ninguém ousava pronunciar e quem o fizesse, de imediato, se benzia e recitava, pelo menos, três vezes, “Ave-maria, Ave-maria, Ave-maria”, para que o dito não atraísse o real maldito. Como proteção, recorríamos à reza e às promessas. Além do rosário, lembro-me que, em progressão geométrica, me comprometia a rezar 10, depois 20, depois 40 pais-nossos e ave-marias para esconjurar o perigo vermelho. Como não conseguia dar conta das promessas, lembro-me que dormia com fome combinada à culpa, em razão da dívida devocional. Jamais revelei essa dívida da infância aos meus pais. Guardava comigo a culpa e o medo. Lendo depois o texto “O capitalismo como religião”, de Walter Benjamin, percebi que é pela culpa (dívida) que se fortalece a cópula entre capital e alienação religiosa.


Ao mirar em retrospectiva, agora perto dos 63 anos, neste 2019 regressivo, me vêm à memória as duas mãos num cumprimento de força e união do programa “Aliança para o Progresso”. Leite em pó e óleo da generosidade anticomunista chegavam à pobre Jaguaruana e, regularmente, meu pai dirigia-se em montaria de jumento para pegar na igreja de Nossa Senhora Santana a porção ideológica da benemerência norte-americana. À época, com menos de 10 anos, nada percebia da aliança programática entre anticomunismo e “Aliança para o Progresso”.


Numa ocasião, minha mãe Ana Nilda discutia com meu pai Marcondes por ter chamado de ladrão o vigário que indevidamente cobrava uma taxa pela esmola ianque que gratuitamente deveria ser distribuída aos pobres. Pais católicos, formados pela religiosidade devocional do medo trazida da Idade Média para aqueles confins, minha mãe de forma peremptória exigiu que meu pai deveria confessar-se com o padre e pedir perdão pela ofensa. Seguramente não o fez.


Dois anos depois, em dezembro de 1966, meus pais, com cinco filhos entre 10 e 1 ano, sendo eu o mais velho, faziam a viagem retirante de Jaguaruana para Manaus. Da Jaguaruana de 1964 à Manaus de 2019, 55 anos depois, o passado se faz presente num golpe em processo, em que se combinam tragédia, farsa e escárnio. Quanto a mim, a mesma filosofia que me expurgou o medo religioso e, para falar com Sartre, ainda hoje me assegura a unidade do que faço, nem na Universidade encontra ela abrigo seguro, diante do ódio ao pensamento e do obscurantismo, que torna presente o passado dos tempos medievais, de medo e tutela. 1964 vivido na infância pobre de Jaguaruana volta numa combinação de espectro e ameaça real na Manaus de 2019 em que vivo.


A verdade é que 1964, morto sem sepultura, permaneceu vivo sob camadas de sombra. O que se julgava passado, emergiu do submundo das pulsões mais inconfessáveis. De 1964 para cá, a luta pela democracia fez avanços formais materializados na Constituição de 1988, mas não alterou as raízes da desigualdade social. O Estado permaneceu burguês, autoritário e bem controlado pelo capital sem controle. A direita, em sua mais extremada configuração, se desinibiu de vez, e submeteu até a direita clássica, a ponto de propor uma nova hermenêutica histórica e regressiva: como se o Brasil de 2019, para se redimir, devesse buscar em 1964 a axiologia que o libertou da ameaça vermelha. O que fazer?


Como evitar ou travar a velocidade da regressão? Como lutar contra o sono da razão? A tragédia, a farsa e o escárnio, ou nos unem, ou sucumbiremos todos no individualismo imobilizante de quem pensa salvar-se a si mesmo como o Barão de Münchhausen. Se alguma unidade for possível, será a dos que coletivamente lutam e resistem ao obscurantismo ensandecido e, a cada dia, mais desinibido, destravado e arrogantemente ignorante. Veredas de libertação, de verdade, só as que abrirmos na luta com braços e mentes. Que 1964 retorne a 1964, e 2019 volte a se encontrar com os ares do Estado Democrático de Direito a partir dos empobrecidos e no contracurso da burguesia autoritária e presidida pela arrogância financeira da baixa política. 


José Alcimar de Oliveira, Departamento de Filosofia, Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Amazonas (UFAM), profalcimar@bol.com.br



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