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  26/10/2019 - por José Silverio Baia Horta e Rosa Helena Dias da Silva





O Norte é a região brasileira com o maior número de terras indígenas, a maior população indígena e a mais rica diversidade étnica, linguística e cultural do país. No entanto, ainda é pequena a presença da temática indígena e de temas correlatos – interculturalidade e conhecimentos tradicionais – nas atividades acadêmicas das universidades da região.

A presença da temática indígena na pós-graduação

Partindo do princípio que a ênfase na dimensão dos programas de pós-graduação é altamente positiva quando referida à inserção regional – que se traduz na definição da identidade do mesmo, de suas linhas e projetos de pesquisa, produção bibliográfica, teses e dissertações e de seus conteúdos curriculares, que devem estar relacionados com os desafios que a região apresenta –, realizamos um levantamento exaustivo na página da Capes, dos dados dos programas de pós-graduação de todas as áreas em funcionamento nas Instituições de Ensino Superior (IES) da região norte.  Foram consultados o título e a ementa dos projetos de pesquisa e o título, as palavras-chave e o resumo das teses e dissertações de 2013 a 2017. Fizemos também um levantamento da produção bibliográfica dos programas, em 2018 (ver quadro).

Um número razoável de programas afirma, em suas propostas, dar ênfase à vinculação com a região. Entretanto, na maior parte dos casos, isto não se traduz nas linhas e projetos de pesquisa e nas dissertações e teses. Quando pesquisadas, as temáticas ribeirinhas e quilombolas, os indicadores são ainda menores. Os dados permitem afirmar que, mesmo que a Amazônia esteja presente nos programas, o amazônida está quase ausente.

A presença da temática e dos próprios indígenas na graduação

Com relação à graduação, essa presença se dá com mais efetividade nas últimas duas décadas, a partir de políticas de ação afirmativa, com destaque às cotas e aos cursos de formação de professores indígenas – as chamadas Licenciaturas Interculturais – atualmente em andamento na maioria das IES públicas do Norte.

Cresce, a cada dia, a demanda indígena por cursos superiores que proporcionem um ensino diferenciado, voltado ao fortalecimento de seus projetos enquanto povos culturalmente diversos e, consequentemente, com pensamentos, modos de vida e de organização social diferenciados. Longe estamos, entretanto, do estabelecimento de políticas públicas que garantam, efetivamente, não apenas o acesso, mas a permanência bem-sucedida dos povos indígenas na universidade.

Processo permeado de inúmeros desafios e contradições/tensões, a busca pela universidade, para os povos indígenas, é visualizada como mais um instrumental de resistência e construção de novas relações com a sociedade, através da perspectiva do diálogo intercultural. A formação de quadros – sejam eles lideranças e/ou professores indígenas, dentre outros – figura no cenário da luta indígena como uma das questões de destaque frente à concretização da autonomia e respeito à diferença.

Pensar a presença de estudantes indígenas nas instituições universitárias é enfrentar o desafio de mudar mentalidades; superar o histórico preconceito, velado ou aberto, para com os povos indígenas; e transformar relações, sejam elas assistencialistas ou de subalternidade, com vistas a um protagonismo compartilhado, que envolve diversos personagens, nos quais diálogo, conflito e negociação têm que ser trabalhados.

Sobre a presença da temática indígena nas pesquisas e produções da graduação (Pibics, TCCs, dentre outros) não temos dados no momento. O que gostaríamos de afirmar é que uma maior presença de estudantes indígenas nos cursos de graduação poderá repercutir na maior presença destes na pós-graduação e na autoria e protagonismo nos projetos de pesquisa.

Para realmente incluir os amazônidas – seja nas pesquisas, na graduação e pós-graduação, seja nas atividades de ensino/formação e extensão –, faz-se necessário entrar em diálogo com o outro, suas lógicas e epistemologias, seus valores e, mais do que isso, estar convencido de que este é um processo que vale a pena.

Assim, esta reflexão acerca da presença dos povos indígenas nos trabalhos sobre a Amazônia, nos desafia a pensar de outras maneiras. Não se trata, necessariamente, de romper com o que foi historicamente instituído como saber hegemônico, como “conhecimento válido”. Trata-se de um distanciamento necessário, para percebermos que em muitas destas perspectivas – que parecem novas – habitam velhas ideias como, por exemplo, a divisão entre pensamento primitivo (mágico, irracional, entre outros nomes que foram/são usados para caracterizar os saberes tradicionais dos povos indígenas) e saber filosófico e/ou científico. Perspectivas como essa encerram o assunto antes mesmo que um possível diálogo tenha sido estabelecido.

E neste processo de mudanças de visão e paradigma frente à questão de como a humanidade – com toda sua diversidade – pensa sobre si mesma e seu mundo, constrói conhecimentos e verdades, impõe-se a necessidade de superarmos o etnocentrismo que acompanhou a trajetória destes 519 anos de Brasil.

Na história política de nosso país (e, lamentavelmente, na atualidade), a diversidade de lógicas, pensamentos, sabedorias e racionalidades e a riqueza de culturas, de jeitos de ser humano foram tidas como obstáculos ao modelo de desenvolvimento/progresso que predominou.

Os povos indígenas foram (e, para muitos, continuam sendo) considerados como portadores de “déficits” e não como sujeitos com potencialidades e valores próprios. É preciso admitir que há outras lógicas, outros jeitos de olhar e explicar a realidade e seus “problemas”. Enfim, há racionalidades, há epistemologias – no plural.

Por isso, a diversidade indígena precisa ser abordada como questão filosófica e política, visto que ela traz consigo a questão de como nos representamos e como representamos os outros, e traz também a tensão entre os saberes historicamente constituídos sobre estes povos e suas narrativas e resistências.

O silenciamento dos povos indígenas e de suas diferentes maneiras de conceber e construir a vida foi e, em muitos casos, continua sendo, a estratégia discursiva do Estado para consolidar o que hoje conhecemos como a “cultura nacional”.

Desafio do diálogo intercientífico: epistemologias no plural

Há 25 anos, Stephen Corry, em seu texto  Guardianes de La Tierra Sagrada seu texto  Guardianes de La Tierra Sagrada (revista especial da Survival Internacional, Londres, 1994), já nos chamava a atenção para a atualidade e pertinência das propostas e valores indígenas para pensarmos o presente e o futuro do planeta ao afirmar que “os povos indígenas são sociedades viáveis e contemporâneas, com complexos modos de vida, assim como com formas progressistas de pensamento que são muito pertinentes para o mundo atual”.

A recente Declaração de Princípios dos Povos Indígenas do Amazonas, ao tratar de identidade e diversidade, afirma: “Somos povos indígenas, coletividades descendentes dos povos originários do continente americano antes da chegada dos europeus, que nos distinguimos no conjunto da sociedade e entre nós, com identidades e organizações próprias, cosmovisões e epistemologias específicas e especial relação com os territórios que habitamos”.

Tal documento foi pré-aprovado na IV Marcha dos Povos Indígenas do Amazonas – organizada pelo Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas (Foreeia), de 13 a 16 de agosto – e está em discussão nas bases do movimento para aprovação final na V Marcha, a ser realizada em dezembro deste ano.

No texto de fundamentação da Declaração, podemos ler: “Defendemos que a educação escolar indígena, que é estratégica para o futuro dos povos indígenas, respeite os processos próprios de aprendizagem, seja intercultural, intercientífica e específica para cada comunidade indígena, autodeterminada, de acordo com a situação sociolinguística e orientada para o fortalecimento dos projetos de vida autônomos dos nossos povos. Que ela responda adequadamente às demandas que vem das comunidades, inclusive quanto à formação dos professores indígenas, às instalações escolares e ao acesso às universidades”.

Convencidos da pertinência destas reflexões, reafirmamos nosso entendimento sobre a necessidade de se pensar em iniciativas institucionais que assumam como possibilidade pedagógica o diálogo entre os diferentes saberes, configurando-se assim, uma forma de inclusão que acolhe “o diferente” deixando-se questionar, permitindo-se transformar.

Entendemos como necessidade e responsabilidade institucional das IES públicas do Norte promover o estabelecimento de novas relações de ensino, pesquisa e extensão – nas quais todos sejam sujeitos.

Entendemos como necessidade assumir uma perspectiva intercultural crítica e radical que questione os poderes desiguais; que encare a complexidade do diálogo entre diferentes lógicas, entre diferentes maneiras de explicar o mundo, de construir verdades, entre diferentes racionalidades. E que possa se estabelecer um diálogo na perspectiva da intercientificidade: que acolha e esteja aberto a novas sínteses teóricas, abordagens metodológicas e formas de avaliação. Enfim, que os chamados conhecimentos universais possam ser mais universais e que saiam ganhando tanto os povos indígenas como as universidades.

Como afirmou Wilmar D´Angelis, em poesia dedicada aos professores Mura (“A última invasão dos Mura à cidade de Manaus no ano do Senhor de 2006”), por ocasião do Seminário de apresentação da proposta do Curso de Licenciatura para Formação de Professores Indígenas da Faculdade de Educação da Ufam:

A Universidade não poderá ser a mesma se acolher esse curso que foi proposto, se deixar essas águas novas invadirem seu percurso. Nenhuma Universidade será a mesma se fizer experiência semelhante, desde que saiba o que significa “diálogo”.

Em tempos em que os perversos governam, atacam fortemente os direitos dos trabalhadores, as minorias e os povos indígenas, e procuram destruir as universidades públicas e as instituições de pesquisa, golpeando seus financiamentos, necessário se faz continuar lutando para que tais retrocessos não se consolidem. Com a mesma importância vemos a necessidade de maior inserção das temáticas e dos próprios amazônidas (e não apenas da Amazônia) nos projetos e atividades da academia nas suas diversas áreas, em especial no Norte.

*José Silverio Baia Horta é professor titular aposentado da UFRJ e Rosa Helena Dias da Silva é professora associada III aposentada da Ufam.



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