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  26/09/2019 - por Marcelo Seráfico





O avanço do fogo para a fronteira amazônica, no verão de 2019, não é compreensível pela simples constatação da existência de fumaça.

A tentação de atribuir ao aquecimento global – eufemística e estrategicamente chamado de “mudanças climáticas” – ou à brutalidade governamental – secundada por uma tropa de piromaníacos – a razão de ser da devastação, identifica causas, mas não as relaciona nem oferece pistas para entendermos como a conjuntura política brasileira se conecta com processos estruturais de longo prazo.

A Amazônia brasileira, mais que região geográfica, tem sido uma área de expansão do desenvolvimento capitalista. Tudo que nela está tem sido objeto de inquietação intelectual, codificação econômica e intervenção política. A fauna, a flora, os minerais e as bacias hidrográficas contidos nesse território de mais de 1.5 milhões de quilômetros quadrados movem interesses que vão da curiosidade científica à política pública, passando pelas estratégias empresariais. Não raro, esses interesses estão intimamente associados. Mas há momentos, como agora, em que se distanciam e os impasses políticos e econômicos se revelam com clareza.

Na segunda década do século XXI, a humanidade está às voltas com a fatura cobrada pela natureza por desserviços provocados pela exploração desmesurada dos recursos que tornam possível a vida na Terra.

Alguns, tardiamente, descobrem o papel da Amazônia na manutenção do delicado equilíbrio instável dos ecossitemas terrestres, em suas múltiplas interações. Outros teimam em negar tal realidade, dando as costas para as evidências e cultuando práticas econômicas e visões de mundo ancoradas num passado em que a destruição da natureza era a marca principal do “ser moderno”. Outros, ainda, militam apaixonadamente pela defesa do ambiente; heróis civilizatórios, restauram mitos do século XVI para tratar das questões do XXI, imaginando um ambiente povoado de homens maus a sangrar uma natureza boa. O comum a todos é a dificuldade de situar o ambiente no tempo e ambos, ambiente e tempo, como resultado da ação das gentes, elas também parte do meio no qual produzem, distribuem e consomem o que lhes dá vida ao longo de dias, tardes e noites.

Que a cidade de São Paulo tenha anoitecido à tarde, como ocorreu em agosto, como efeito da combinação entre as queimadas na Amazônia com as condições climáticas da capital econômica do país, é expressão emblemática do modo como a ação destrutiva do homem sobre o ambiente em que se faz gente aponta para uma tragédia. E mais, revela a unidade entre as partes, a totalidade de uma realidade que com frequência se prefere ver apenas como um agregado de fragmentos distintos entre si.

Uma tal compreensão totalizante é improvável quando se abstrai da história, isto é, quando se evita a análise da ação humana sobre o ambiente, considerando-se suas origens, motivações e resultados.

Sem a história, ignora-se ou minimiza-se o protagonismo dos povos originários no manejo e proteção do ambiente amazônico; forjam-se novos mitos, como o do Curupira Pós-Moderno, com o qual se atribui a um mecanismo de atração de investimentos para a industrialização, como a Zona Franca de Manaus, o condão de proteger a natureza; elide-se a luta sangrenta pela apropriação da fauna, da flora, dos minérios, das águas e de tudo a que se possa atribuir valor em moeda; e, pior, esconde-se que a ação predatória beneficia poucos e penaliza milhares, centenas de milhões ou bilhões por todo o mundo.

O fogo que hoje toma a Amazônia vem de há muito tempo.  Ele assume formas variadas. Projetos de contrarreforma agrária, pecuária, agricultura, exploração madeireira, mineração, militarização, construção de hidrelétricas, ferrovias, rodovias; projetos, enfim, de transformação da realidade amazônica que a tomam como uma vasta reserva de valor a ser contabilizada em moeda e convertida em lucros e acumulação.

O irônico e por vezes cínico dessa situação é que todos esses projetos são implementados em nome do “desenvolvimento da região”. Um tipo de desenvolvimento que se funda na “necropolítica”, a política de morte pensada e aplicada racionalmente contra aqueles cuja razão se guia por critérios alheios aos do circuito de valorização do capital, aqueles aos quais é deixada uma única opção: participar da destruição ou perecer.

A chave para entender o fogo não está, portanto, no aquecimento global nem nas mãos dos que o ateiam. Está, isto sim, nos gabinetes ministeriais, nas sedes das madeireiras, das empresas agropecuárias, nas corporações de mineração... e nas bolsas de valores, que tudo calculam como forma de especular e lucrar.

O fogo ateado às florestas e o disparado contra indígenas, seringueiros, posseiros, sindicalistas, trabalhadores rurais, quilombolas, ribeirinhos, agentes públicos e cientistas, apesar de sua diversidade de origem, de motivações e de resultados, tem uma consequência evidente hoje: o avanço da destruição das condições de vida no planeta.

Usada como moeda de troca econômica ou como conteúdo de retórica política ao sabor das conjunturas e interesses específicos, a Amazônia permanece um desafio para a inteligência, a política e a economia. As vidas de quem se faz gente nela estão atadas às vidas de quem dela se nutre como meio de, exclusivamente, acumular; a destruição da Amazônia está intimamente relacionada, assim, à consolidação de um modo de dominação política e de apropriação econômica profundamente concentrador de poder e riqueza. Um modo de dominação “necropolítico” que é a alma de um modo de exploração assentado na “economia da catástrofe”.

Enquanto a política fulmina ideologicamente quem se opõe a determinados modos de ser e se fazer gente, a economia os destrói materialmente. Estamos diante de uma economia política da “destruição não criadora”, isto é, de um tipo de desenvolvimento capitalista que aponta para o abismo. O cenário não é, portanto, o de uma planície da qual se extrai madeira, na qual se planta soja ou alimenta gado. É, isto sim, de um relevo sob o qual jazem histórias sepultadas pela brutalidade do fogo, símbolo, nesse caso, da morte e da catástrofe elevadas ao status de economia política.

O desafio posto aos que se opõem a esse lúgubre modo de ver a Amazônia e nela agir é, decifrando-o, exorcizá-lo, criando ou afirmando projetos de estar e fazer a vida que permitam viver a quem está dentro e fora de seus limites geográficos. 

*Marcelo Seráfico é doutor em Sociologia e professor do curso de Ciências Sociais e do programa de pós-graduação em Sociologia da Ufam.



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