O sujeito que apelidou o Brasil de "país do futuro" se suicidou. Não é uma condenação, mas não deixa de ser um indício. Se Stefan Zweig estivesse vivo hoje, provavelmente se mataria de novo ao notar quão distante da realização sua profecia se encontra, mais de sessenta anos depois. Nosso futuro está penhorado porque não cuidamos do patrimônio mais importante que um país tem: sua gente. Se dependermos da qualificação dela para avançarmos, tudo leva a crer que continuaremos vendo os países desenvolvidos de longe e que, assim como a geração anterior viu o Brasil ser ultrapassado pelos tigres asiáticos, a nossa irá testemunhar a passagem de China, Índia e outros países menores. Enquanto os países de ponta chegam perto da clonagem humana, nós ainda não conseguimos alfabetizar nossas crianças.
Não é exagero, infelizmente. O último levantamento do Inaf (Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional realizado pelo Instituto Paulo Montenegro) mostrou que apenas 26% da população brasileira de 15 a 64 anos é plenamente alfabetizada. Deixe-me repetir: três quartos da nossa população não seria capaz de ler e compreender um texto como este. Na outra grande área do conhecimento, a Matemática, a situação é igualmente desoladora: só 23%, segundo o mesmo Inaf, consegue resolver um problema matemático que envolva mais de uma operação, e apenas esse mesmo grupo tem capacidade para entender gráficos e tabelas.
Esses indicadores são o produto final de um sistema de educação que apresenta deficiências, de modo geral, em todas as etapas do ensino, em todo o país (ainda que as tradicionais diferenças regionais também se manifestem na área educacional) e tanto nas escolas públicas como nas privadas. É um quadro que não pode ser creditado ao nosso subdesenvolvimento, pois países muito mais pobres tiveram (Coreia) e têm atualmente (China) desempenhos muito melhores que os nossos. Na área da educação, especialmente de ensino básico, nossos pares são os países falidos da África subsaariana.
O exemplo mais claro dessa falência é também o mais preocupante, por estar na origem de todo o sistema: o nosso índice de repetência nos primeiros anos. Segundo os dados mais recentes da Unesco, 31% de nossos alunos da primeira série do ensino fundamental são repetentes. Na nossa frente, apenas as seguintes "potências": Gabão, Guiné, Nepal, Ruanda, Madagascar, Laos e São Tomé e Príncipe. A taxa da Argentina é de 10%, a da China e da Rússia de 1%, a da Índia de 3,5% e de praticamente zero nos países industrializados da OCDE. Na segunda série, temos mais 20% de repetentes. É possível, portanto, que metade dos alunos que adentram nossas escolas tenha repetido uma série já no segundo ano de ensino. Isso não é apenas preocupante pelo efeito que a repetência tem na autoestima dos alunos, nem pelo custo bilionário a mais gerado por eles. O que mais inquieta é: imagine a qualidade de um sistema de ensino que reprova a metade dos seus alunos justamente na fase onde se transmite o conhecimento mais básico, de ler e escrever; que torna eliminatório um período que é meramente um rito de passagem nos outros países. Se não conseguimos alfabetizar, conseguiremos ensinar Matemática, Química, Geografia? Conseguiremos ensinar nosso aluno a pensar? Conseguiremos torná-lo um cidadão consciente? Claro que não. Não conseguimos nem mantê-lo na escola até o seu término. A má qualidade perpassa todo o sistema.
O Saeb de 2003 (Sistema de Avaliação da Educação Básica), teste bienal do MEC que mede a qualidade da educação da 4ª, 8ª e 11ª séries, mostra não apenas a situação desesperadora de nosso ensino - na 4ª série, por exemplo, 55% do alunado estava em situação crítica ou muito crítica na área de leitura e só 5% tinha desempenho adequado - mas o que é pior: desde a primeira edição, em 1995, os resultados médios só caem, tanto em Português quanto em Matemática (afora uma pequena subida em 2003, mas dentro da margem de erro).
O resultado é um aluno que sai do ciclo inicial sem a menor condição de progredir na vida escolar. Mesmo que entenda aquilo que lhe for ensinado, não tem domínio suficiente da linguagem para exprimi-lo em uma prova. Assim, o retrato típico do nosso aluno é de alguém que vai repetindo de ano, progredindo aos trancos e barrancos. Aos catorze anos de idade, por exemplo, praticamente dois terços dos alunos estão defasados, cursando uma série destinada a pessoas de menor idade.
Aqueles que chegam ao ensino médio (o antigo segundo grau) são poucos. E apesar da peneira do sistema - segundo a Sinopse Estatística da Educação Básica de 2005, temos 5,7 milhões de alunos na primeira série do ensino fundamental e só 2,4 milhões na última série do ensino médio -, mesmo os que ficam têm um desempenho muito fraco.
O Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) da OCDE testou jovens de quinze anos de quarenta países em sua edição de 2003. O Brasil ficou em posição de destaque, ainda que não pelos motivos desejados: amargamos o último lugar em Matemática, o penúltimo em Ciências e o 37º em leitura.
Com essa qualidade sofrível, a educação brasileira deixa de ser o magnífico investimento que ela é em quase todo o mundo em todas as épocas e passa a ser um fardo para o aluno. Vale mais a pena ir trabalhar do que gastar horas e anos em aulas onde se aprende quase nada. O resultado é inescapável: abandono.
Aos poucos bravos que ainda terminam o ensino básico apresenta-se a derradeira armadilha: aqueles que não têm dinheiro não conseguem entrar nas universidades privadas por falta de recursos, apesar da ociosidade de vagas dessas instituições, e tampouco têm acesso aos cursos concorridos e de maior prestígio no mercado de trabalho das universidades estatais, porque a quantidade risível de vagas oferecidas nessas instituições acaba sendo preenchida por quem tem dinheiro suficiente para arcar com os melhores colégios e cursinhos. O pobre fica de fora e o rico estuda de graça, custeado pelos impostos que recaem desproporcionalmente sobre aqueles de baixa renda. E assim se perpetuam nossas desigualdades.
Todo o acúmulo de erros e descasos da nossa educação culmina em um sistema de ensino superior raquítico, para muito poucos. Enquanto nossa taxa de matrícula nesse nível patina em 20%, ela já bate na casa dos 90% em países como Coreia e Finlândia, está acima dos 60% em vários países europeus e mesmo entre os nossos vizinhos já está algumas ordens de grandeza mais adiante: 61% na Argentina, 43% no Chile, 39% na Venezuela, 32% no Peru (!).
O círculo se fecha: nossa taxa de analfabetismo funcional é semelhante à taxa de matrícula universitária dos países desenvolvidos. Repito: temos de iletrados aquilo que outros países estão formando em bacharéis. Como escreveu Claudio de Moura Castro com a acuidade de sempre, precisamos de uma crise. E estamos nela, até o pescoço, ainda que não tenhamos nos dado conta.
Neste espaço, você irá entender como chegamos aqui, por que colocar seu filho em uma escola particular não resolve problema nenhum, como a maioria dos fatores usualmente apontados como grandes responsáveis por nossas deficiências não passam de mitos, que impacto a crise educacional tem sobre as possibilidades de desenvolvimento do país e o que pode ser feito, concretamente, para que possamos resolver esse quadro lastimável e permitir que pensemos viver no país do futuro - sem que isso nos condene à autoimolação ou aos hospitais psiquiátricos.
* Trecho do livro "O Que o Brasil Quer Ser Quando Crescer?", que reúne artigos publicados na revista "Veja", entre julho de 2006 e setembro de 2012, que apresentam o que o autor considera uma crise no sistema educacional brasileiro, tanto público quanto privado. |