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  06/11/2012 - por Prof. Dr. José Maria Alves da Silva



O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Docente (Capes) são órgãos estatais que foram criados com objetivo de fomentar a ciência e a educação no Brasil.

Um dos idealizadores do Conselho Nacional de Pesquisa, fundado em 1951, do qual se originou o CNPq, foi o grande físico Cesar Lattes, que ficou mais conhecido pelo currículo que lhe leva o nome, e só não esteve entre os laureados ao premio Nobel porque os que costumam conceder essa honraria, em caso de dúvida, pendem para o lado dos compatriotas.

A Capes, idealizada pelo educador Anísio Teixeira, tinha por objetivo original a qualificação de professores, partindo do princípio óbvio de que não pode haver boa educação sem bons quadros docentes, e que, portanto, não adianta expandir o sistema educacional sem o recurso fundamental que determina sua qualidade: o professor. Esta era a lógica simples na qual se fundamentava o ideal de Anísio Teixeira. Ele tinha visão de futuro e sabia ser necessário para o Brasil adaptar seu sistema educacional para uma nova era de modernização econômica, que inevitavelmente viria de fora para dentro, e que, para acompanhar a tendência mundial, o Brasil precisaria de professores capazes de assimilar e transmitir os novos conhecimentos que se tornavam necessários. Portanto, era preciso fazer um trabalho de formação de quadros docentes adaptados às exigências de uma nova época. Era esse, em linhas gerais, o motivo original da criação da Capes.

Além do apreço à boa educação e à boa ciência, os idealizadores do CNPq e da Capes eram patriotas que achavam que o Brasil poderia percorrer o caminho já trilhado pelos países desenvolvidos. Não há dúvida de que, para isso, o desenvolvimento da educação, da ciência, e, por meio delas, da tecnologia, eram os ingredientes mais essenciais. No entanto, fazendo uma avaliação do comportamento dessas agências, nas últimas décadas, chegamos à conclusão que elas estão em flagrante contradição com os objetivos originais. Não estão honrando a memória dos grandes brasileiros que mais contribuíram para sua criação.

Certamente, as universidades públicas brasileiras poderiam contar com apoios importantes caso elas, de fato, funcionassem de acordo com os objetivos propostos originariamente, mas sem que, para isso, tivessem de se portar de forma subordinada e dependente, caso contrário, além da violação do princípio da autonomia, se estaria implantando instrumentos de controle governamental sobre o meio acadêmico, em clara violação a princípios consagrados do Estado Democrático de Direito e absoluto desacordo com a idéia de universidade como espaço da liberdade de pensamento, da liberdade de cátedra, da liberdade de expressão e do pluralismo de idéias. Mas, infelizmente, é isso que está acontecendo pari passu com a crescente relação de dependência financeira para com órgãos federais localizados em Brasília.

A partir do governo FHC essa relação de dependência acentuou-se, devido ao esvaziamento de recursos orçamentários destinados diretamente a elas, a ponto de implicar numa velada relação de subordinação. O CNPq passou a ditar os rumos da pesquisa e a Capes a ter poder de vida e morte sobre cursos de pós-graduação. Antes disso, já se havia criado uma aberração por meio do CNPq: a bolsa de produtividade em pesquisa, crasso exemplo de intromissão indevida no meio acadêmico. Sei que falando isso vou, desde já, angariar as antipatias de um número grande de docentes que já se acostumaram a contar com essa forma de renda complementar. Mas é preciso dizer que isso está em contradição com o princípio da autonomia e a idéia de universidade como “consciência crítica da Nação”. Tal como está estabelecida, a bolsa de produtividade de pesquisa é uma distorção, porque, ao estabelecer uma vinculação direta do CNPq com cada docente pesquisador simplesmente “passa por cima das instituições”. Se fosse para premiar produtividades excepcionais em pesquisa, algo que, a meu ver é muito difícil de aferir à distância, melhor seria que determinadas quotas de bolsas fossem concedidas às universidades, segundo critérios muito bem definidos, para que estas fizessem a distribuição interna segundo seus próprios critérios e objetivos, os quais, naturalmente deveriam ser definidos mediante ampla discussão entre a comunidade interessada.

Essa “ligação direta” com os docentes, extremamente vulnerável a fisiologismos de toda natureza, abre a possibilidade de que uma burocracia brasiliense possa influenciar nos rumos da pesquisa nos campus universitários espalhados pelo país, e assegurar a certas oligarquias científicas bem estabelecidas acesso privilegiado a recursos públicos significativos. Outros canais de influência são as destinações indiretas de verbas extraordinárias de convênios que dirigentes universitários se acostumaram a disputar, “de pires na mão”, e que também são extremamente susceptíveis ao tráfico de influências.

Tal situação é especialmente lamentável a todos os que vieram para a universidade pública imaginando fazer parte de uma instituição fundamental do Estado e não mais um órgão qualquer de governo, sujeito aos “humores” da política.

É comum ver docentes da universidade pública, contratados em regime de dedicação exclusiva, que se apresentam ao mesmo tempo como “professor universitário” e “pesquisador do CNPq”. Isso mostra que falta definir ainda se a dedicação exclusiva é para ser entendida no aspecto institucional ou funcional. A valer o primeiro caso, ninguém da universidade pública, com DE, poderá ser chamado de pesquisador do CNPq, posto que, tal regime necessariamente pressupõe o envolvimento, na universidade, com a tríade: ensino, pesquisa e extensão, indissociavelmente, sem qualquer vínculo com outra instituição. Se for entendida no aspecto funcional, isto é, como dedicação exclusiva à atividade acadêmica, o vínculo docente com instituições não-universitárias poderia ser permitido, mas isso inevitavelmente introduziria algum desequilíbrio na tríade. É isso que acontece com os bolsistas do CNPq, para os quais o lado da pesquisa acaba ganhando mais peso, em detrimento do ensino e da extensão. A pesquisa é incentivada, pelas bolsas de produtividade em pesquisa, mas ninguém incentiva a educação superior, como atividade formadora de opiniões políticas esclarecidas e de profissionais de alto conteúdo ético, que estão muito em falta neste País.

Se existe um órgão lotado no Ministério da Ciência e Tecnologia, para fomentar atividades que lhe dizem respeito, é lógico supor que o mesmo deveria acontecer no MEC, se for para fomentar a educação. Mas, na verdade, isso não ocorre. Um exame da missão da Capes, disponível em seu sítio da internet, indica maior compromisso com pesquisa científica do que com a educação superior propriamente dita. Há bom tempo que sua principal função tem sido fomentar e avaliar cursos de pós-graduação, atividades para as quais foram destinados cerca de 75% dos recursos orçamentários executados pelo órgão em 2009 (cerca de um bilhão e setecentos milhões de reais). Até aí nenhuma incoerência, uma vez que os cursos de pós-graduação também fazem parte da função educação.

Contudo, os parâmetros de avaliação e critérios de distribuição de recursos utilizados priorizam as atividades de pesquisa vinculadas aos programas de pós-graduação, como é o caso de publicações em revistas científicas indexadas, fator preponderante na pontuação aos programas. Outro fator importante é o que se chama de inserção internacional, entenda-se “convergência de conteúdos disciplinares e programas de pesquisa a padrões ditados de fora para dentro”. Podemos chamar a isso de fomento à educação superior nacional?

Na verdade, esses critérios estão contribuindo para aumentar as desigualdades de condições entre instituições públicas brasileiras de ensino superior. As instituições que não operam com pós-graduação ficam limitadas às dotações orçamentárias do OGU diretamente alocadas à função educação superior. As que possuem programas de pós-graduação, tradicionalmente as melhor localizadas em relação aos centros de poder, têm acesso diferenciado a recursos extras provenientes de transferências da Capes e do CNPq. Assim, nosso sistema de ensino superior pode ser dividido em dois segmentos: um que subsiste em condições miseráveis, mas independente das agências reguladoras, e outro constituído pelas universidades com tradição em pesquisa, mas que depende crucialmente dessas fontes de recursos, razão pela qual a Capes adquiriu um poder de vida e morte sobre as instituições que dele participam. A criação de novos programas de pós-graduação, com uma mínima garantia de recursos, depende de sua aprovação, em conformidade com os padrões ditados, ao passo que os programas já existentes que não obtiverem pontuação suficiente para alcançar classificação igual ou superior a quatro perdem acesso aos recursos e são praticamente condenados à extinção. Nessa relação subordinada, tudo o que os docentes podem fazer é seguir os ditames da Capes, que os coordenadores colocam na mesa de reuniões, e ponto final.

Estando, de fato, mais focada na atividade de pesquisa do que na educação, a Capes se coloca numa área de superposição com o CNPq, desvirtuando-se em relação aos seus objetivos originais, que era o da formação de quadros docentes qualificados. Na universidade pública, isso pressupõe a formação não apenas de pesquisadores ou tecnólogos, mas, sobretudo, de docentes politizados e pensadores das problemáticas nacionais, capazes de contribuir para a formação de agentes de transformação social. No entanto, por força das ingerências dessas agências, introduziu-se um viés cientificista-tecnológico a ponto de fazer com que as atividades nas áreas de humanidades sejam regidas pelos mesmos parâmetros das ciências naturais, exatas e tecnológicas. Trata-se de uma imposição autoritária do monismo metodológico pelas oligarquias científicas que determinam critérios que são mais convenientes a eles próprios, à revelia do povo e do País. Essa é a razão pela qual se vê hoje tantos cientistas políticos, sociólogos, filósofos, historiadores, economistas, geógrafos, antropólogos e outros profissionais das humanidades completamente alheios à nefasta tendência social brasileira. O que estão fazendo eles? Estão elaborando projetos de pesquisa para o CNPq, preenchendo relatórios de prestação de contas, atualizando ininterruptamente o currículo Lattes, prospectando editais e correndo atrás da publicação de papers em revistas indexadas, como parte do esforço para que os programas de pós-graduação aos quais pertencem alcancem os pontos necessários para continuar existindo.

É paradoxal constatar que a Capes esteja, de fato, contribuindo para a alienação da classe que deveria estar pensando criticamente o País. O clima de alienação no meio acadêmico é visível na falta de debates, na ausência de conferências indignadas, e mesmo de panfletagem nos meios de comunicação de massa, como era comum em outros tempos de luta pelas liberdades democráticas. Tanto barulho por nada. Os painéis temáticos dos congressos nas áreas de humanidades no Brasil hoje são de uma pobreza assustadora. O que mais se vê são discussões de métodos e assuntos especializados de baixa relevância, por grupos restritos de especialistas que só se comunicam entre si. Enquanto isso, o Brasil caminha na direção contrária do desenvolvimento, com um povo majoritariamente carente de habitação, educação, cuidados pessoais, sendo tratado como gado nos meios de transporte coletivo e no SUS; com uma classe média cada vez mais ameaçada pelo avanço do consumo de drogas, e da morte violenta pelo crime e acidentes de trânsito, devidos à precariedade e a incúria de órgãos estatais que deveriam zelar pela segurança das famílias. Na origem de tudo isso está um Estado que se esfacela moralmente a olhos vistos, enquanto os “cientistas sociais” permanecem num silêncio de sarcófago. Se vivos estivessem, o que diriam Cesar Lattes, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, entre outros patriotas que sonharam com um Brasil grande?

José Maria Alves da Silva é professor Dr. da Universidade Federal de Viçosa - Minas Gerais

Publicado originalmente no site do Sindicato dos Docentes da Unicentro



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