As instituições federais de ensino superior (IFES) do Brasil estão sendo chamadas para definir, de forma absolutamente açodada, se ingressarão ou não no Sistema de Seleção Unificada (SSU) do MEC. Leia-se este “sistema” como a utilização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) modificado como forma de seleção para o ingresso em uma instituição federal de ensino superior!
Muitos questionamentos surgem ao analisarmos minimamente a proposta do governo, apresentada pelo INEP/MEC com suas justificativas.
Comecemos pela seguinte afirmação, constante do texto do INEP: “... o vestibular tradicional ... traz implícitos inconvenientes. Um deles é a descentralização dos processos seletivos, que, por um lado, limita o pleito e favorece candidatos com maior poder aquisitivo, capazes de diversificar suas opções na disputa por uma das vagas oferecidas. Por outro lado, restringe a capacidade de recrutamento pelas IFES, desfavorecendo aquelas localizadas em centros menores.” Podemos aqui colocar algumas perguntas: não estarão os mesmos candidatos com maior poder aquisitivo sendo favorecidos uma vez que são esses que freqüentam as melhores escolas (ver resultado do último ENEM) e, consequentemente, devem ser esses os que obterão as melhores notas nessa prova, tendo inclusive mais recursos para o acompanhamento e monitoramento, através da Internet, do processo de escolha de cursos e/ou instituições, bem como com possibilidades de migração?
O resultado do último ENEM escancara as contradições que resultam da denominada qualidade da educação. Como imaginar que os estudantes possam chegar aos mesmos resultados em tal exame, se partem de realidades e recursos completamente distintos, manifestos, por exemplo, nas dimensões: estrutura física (adequação de salas, existência de biblioteca e laboratórios bem equipados e em funcionamento etc.), pedagógica (relações desejáveis de estudantes/docente, de estudantes/funcionários técnico-administrativos, material didático condizente, equipamentos técnicos e tecnológicos à disposição dos usuários etc..), trabalhista (condições de trabalho e salário dos trabalhadores em educação que militam na unidade, no sistema) e social (disponibilidade e condição da família e do entorno social para compartilhar com o estudante os bens culturais acumulados pela humanidade)? Em relação a recrutar “melhores” estudantes, não estaria este processo criando as ferramentas para reforçar a idéia de centros de excelência nas regiões do país historicamente mais desenvolvidas, em contraposição à necessidade de termos todas as IFES com o mesmo status?
Apontamos ainda para o fenômeno de deslocamento elitizante (estudantes com melhores recursos sócio-econômicos e educacionais), pois os estudantes com melhor desempenho no ENEM, ao saírem de seus locais de origem para outros centros, não necessariamente neles permanecerão, pois a tendência é voltar para sua região. Dessa forma, a universidade deixa de ser uma referência de desenvolvimento para o local em que está instituída, formando profissionais para outras regiões que não aquela onde está.
O governo enfatiza que esta nova modalidade de vestibular (pois a divisão do exame em várias partes temáticas não mantém as características originais do ENEM) busca também estimular a mobilidade estudantil, uma vez que entende que tornará a disputa pelas vagas das IFES mais isonômica, retirando do processo o fator econômico. No entanto, mesmo que aceitássemos tal argumento, fica ainda a questão quanto ao acesso e permanência dos estudantes nas instituições fora de seus locais de origem: a verba para assistência estudantil (moradia, alimentação, transporte, material escolar,...) será suficiente para estas necessidades básicas dos estudantes? Não seria este um fator extremamente importante para evitar a evasão escolar?
A questão da evasão também está colocada quando olhamos para a possibilidade de o estudante poder concorrer em até 5 cursos e/ou instituições do país: permitir mais de uma opção significa que poderemos ter estudantes em cursos não prioritários para eles, o que poderá levar à evasão devido à busca de vaga no curso de 1ª. opção.
Seguindo a leitura do documento do INEP: “outra característica do vestibular tradicional ... é a maneira como ele acaba por orientar o currículo do ensino médio”; perguntamos: por ser o ENEM utilizado como o novo vestibular unificado, não irá orientar também o currículo do ensino médio? Assim sendo, uma prova unificada, com conteúdo nacional, em detrimento dos conhecimentos regionais, poderá levar à perda do estudo das diferenças regionais tais como a cultura, a história, a geografia, a literatura, a arte regionais, levando a uma pasteurização e homogeneização da diversidade regional brasileira.
A instituição de um exame nacional unificado válido para a obtenção de uma vaga em uma IFES traz problemas atualmente não tão cruciais, quando da realização do atual ENEM, de adesão voluntária e não decisiva, que é a questão da segurança em termos de fraudes; como será enfrentada?
Some-se a tantas indagações a questão de um “exame vestibular” realizado antes do final do semestre letivo; não há aí mais um fator elitizante, uma vez que não há, nas escolas públicas, a mesma facilidade em antecipar os conteúdos curriculares como ocorre nas escolas particulares?
O ENEM, até o momento, tem sido utilizado para avaliar o ensino médio e certificar a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Como poderá o novo ENEM atingir estes mesmos objetivos, acrescido, agora, da responsabilidade de servir como prova de seleção para entrar em uma universidade pública, objetivo este tão almejado pelo estudante brasileiro?
Como fica a autonomia das universidades tendo que decidir sobre tal tema – a forma de acesso dos estudantes a seus cursos – dentro de um tempo tão exíguo? A comunidade universitária precisa de tempo para debater e se manifestar sobre o assunto!
Este tema, na realidade, mascara o principal problema existente em nosso país: mais importante do que a forma de acesso à universidade é buscar garantir o direito de todos os que queiram ter acesso à educação superior pública. |