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  00/00/0000 - por Alair Silveira*



Estes são tempos difíceis! Mais do que tempos de solidão, como captou a sensibilidade de Renato Russo no final do século passado, nossos dias são marcados pelo ilhamento pessoal e pelo vazio de manifestações de pertencimento social. Descolado das questões que envolvem a vida real – e, portanto, coletiva -, cada indivíduo move-se a partir dos limites da sua “ilha da fantasia”.

Nessa ilha particular de fantasia – mas coletiva como prática social – a violência da calma é dominante. Como perspicazmente denominou Viviane Forrester (1997), a violência da calma é a violência da indiferença, segundo a qual a sociedade só esboça sentimentos de solidariedade sob o apelo – fugaz - de imagens e relatos que a sensibiliza (especialmente diante de cenas fortes exibidas na TV). Manifesta-se, assim, através de espasmos solidários, logo esquecidos e substituídos pelo universo restrito às fronteiras de cada um, do qual só fazem parte os “iguais”.

Somente em tempos tão sombrios, do ponto de vista da humanidade, se poderia conviver com a naturalização do obscurantismo pós-moderno. Nesses tempos obscuros - fundados sobre o egocentrismo e o anti-coletivismo – as principais experiências e conquistas da humanidade são desconsideradas e rejeitadas. Como lembraram, recentemente, os estudantes da USP em manifestação contra a presença da PM no campus: A história ensina, mas essa aula tem poucos alunos, citando Gramsci.

Amparada pela indiferença socialmente partilhada, a maioria dos jovens está conectada virtualmente, mas paradoxalmente ilhada. Dedicada às suas causas pessoais, nenhuma conseqüência social pode ser extraída dos espasmos de solidariedade ou dos protestos virtuais em rede. Porém, se o individualismo é o motor, o anti-coletivismo é óleo que faz mover as entranhas da pós-modernidade. Nessa condição, combina-se tanto a recusa a qualquer perspectiva histórica ou metateórica, quanto a frugalidade do conhecimento, circunscrito às demandas do mercado. Não se trata, pois, da crítica ao mercado e suas conseqüências sociais, mas da adesão – absolutamente a-crítica - às razões mercantis.

De acordo com tal perspectiva, a formação clássica, metateórica e histórica (e, portanto, socialmente organizada) serve apenas ao século XIX. Para o século XXI é preciso ajustar-se ao mercado; formar para o mercado. Dessa forma, sob o discurso socialmente sensível da ‘empregabilidade’, técnicas são apresentadas como instrumentos de “formação” acadêmica. Paradoxalmente, em tempos de absoluto predomínio de recursos informacionais (cujos programas são capazes de garantir resultados quantitativos), o conhecimento teórico, que garante análise qualitativa, é desprezado.

Nesse argumento anti-clássicos e pró-mercado, em nome do sucesso mercantil e da assepsia científica, tudo é possível. Inclusive defender empresas júnior para assessoria política, onde o conhecimento pode ser vendido como se vende tomates e/ou canetas, sem qualquer resquício de compromisso social ou questionamento ético. Sob essa lógica mercantil, o que interessa é a garantia de espaço profissional – com a chancela do Curso e da Universidade -, mesmo que ao custo de instrumentalizar aqueles que fazem da política partidária o meio através do qual exploram, enganam, submetem e oprimem a maioria dos trabalhadores.

Por trás dos imediatismos acadêmicos e mercantis, entretanto, há uma concepção de mundo, de sociedade e de homem. Assim, de acordo com tal concepção, a ideologia (tendenciosa, radical e ultrapassada) é “dos outros”, e a ciência (asséptica, neutra e técnica) é “nossa”.

Sob estes fundamentos “científicos”, aparentemente protegidos de qualquer rastro de pertencimento social e de “ideologia”, os arautos da modernidade “pós-moderna” recusam validade à crítica, à política e às lutas sociais.

Tal como o espelho que reflete a própria imagem, os pós-modernos fecham-se nos seus círculos de iguais e, auto-suficientes, consideram “perda de tempo” as discussões e os embates – sejam políticos, sejam sindicais, sejam teóricos e acadêmicos – com aqueles que pensam, produzem e atuam sob outras perspectivas políticas e teóricas. Soberbos, e seduzidos pela própria imagem, acusam os outros das suas próprias práticas, na medida em que só vêem o auto-reflexo. Assim, em nome da “modernidade pós-moderna” e “científica”, àqueles que ousarem discordar há o caminho fácil e econômico (bem de acordo com os ditames do mercado) da (des)qualificação: “sectários”, “estacionados no discurso do século passado”, “arrogantes” que se consideram “donos da verdade”, e defensores de uma “ciência moral, messiânica e transformadora já ultrapassada, graças a Deus!”

A Universidade, como espaço histórico da excelência e do contraditório, cada vez mais tem se tornado o locus do discurso único e da indiferença absoluta. Essa indiferença tem como conseqüência tanto a ignorância e o desprezo com relação às metateorias (simples e “cientificamente” decretadas falidas, sem necessidade de comprovação!), quanto o desestímulo nos estudantes de qualquer respeito ao debate político e teórico. Dessa forma, ao invés de conhecimento histórico, político, econômico e social, pode-se ensinar sistemas de cálculos sócio-métricos, nos quais a “técnica” eclipsa questionamentos social e politicamente espinhosos, assim como protege tais “sistemas” da convivência salutar com o contraditório.

Nesses tempos de obscurantismo pós-moderno, no qual a política, o debate, a organização social e as lutas coletivas foram condenadas ao ostracismo teórico e às sempre renovadas tentativas de ridicularização intelectual e social, a adesão da maior parte da intelligentsia à ideologia dominante continua a cumprir o seu papel de medusa, como definiu Chico de Oliveira (1988). Por mais que os pós-modernos e os neo qualquer coisa tentem recusar a história e acreditem que a sociedade mudou a ponto de poderem colocar no lixo os referenciais sob os quais as sociedade classistas são analisadas, tais transformações – para sua infelicidade – não ocorrem por decreto e nem por ato de vontade intelectual.

Mais do que tudo, o que os pós-modernos recusam – e temem - é a possibilidade do conhecimento teórico e histórico revelar aquilo que tentam tão desesperadamente esconder: o que pregam não é novo, nem tão pouco neutro. A história está repleta de períodos e de análises que demonstram a quem servem e para quê servem tais discursos e práticas!

O triste desses tempos é que fazem isso seduzindo uma leva de jovens para o individualismo e o anti-coletivismo exacerbado. O custo social desse processo, obviamente, cobrará sua fatura. Cada vez mais os direitos coletivos, trabalhistas e individuais têm sido subtraídos; o retrocesso histórico se consolida; e as bases sociais que fundam – à lá Durkheim – a consciência coletiva e os laços de solidariedade social, são esfacelados em nome do mercado, do individualismo e de uma certa ciência.

*Professora do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFMT



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