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  00/00/0000 - por José Ribamar Bessa Freire



Polícia, cadeia, tribunal, juiz, código penal, latinorum. Essas instituições raramente punem crimes cometidos contra índios. Por isso, os Guarani não confiam na justiça dos brancos. Conhecidos como os ‘teólogos da floresta’, só acreditam na reza - porahei, de onde tiram sua força e organização. Diante do altar numa casa da aldeia Pirajuí (MS), eles tocam o som agudo do mimby - um instrumento de sopro, dançam jeroky e entoam cantos sagrados, repetindo milhares de vezes, sem parar, como numa ladainha:

- Ore roimé nderehe’y! Ore roimé nderehe’ym…

Significa em português: “Nós sentimos falta de você”. A reza é feita numa língua que os desembargadores ignoram, mas que Nhanderu (Nosso Pai) entende muito bem, porque o guarani é a língua da fé, própria para rezar, cantar, louvar. Na reza, eles conversam com Nhanderu e com o espírito dos professores guarani - Rolindo Verá e Genivaldo Verá - assassinados por pistoleiros em Paranhos (MS), na fronteira com o Paraguai.

A ausência dos dois professores foi sentida na Primeira Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, realizada de 16 a 20 de novembro em Luziânia, na periferia de Brasília, quando foram homenageados com um minuto de silêncio por mais de 700 participantes que discutiram a organização de um sistema educacional responsável, hoje, por 2700 escolas indígenas em todo o Brasil. Numa delas, com 480 alunos, as crianças sentem falta de seus dois professores e também rezam: Ore roimé nderehe’ym.

A última lição

Por que índios armados apenas com giz e apagador são assassinados? Fiz a pergunta ao professor guarani Avá Guyrapá Mirim, presente à Conferência. Ele era amigo de Genivaldo e Rolindo e colega deles na Escola Municipal Adriano Pires. Contou que no dia 29 de outubro os dois integraram o grupo que tentou retomar a terra indígena Tekoha Ypo’i, onde estão enterrados seus avôs, e que hoje, com o nome de Fazenda São Luís, está ocupada pelo fazendeiro Firmino Escobar. Essa foi a última aula que deram.

Com essa aula, ensinaram uma lição escrita com o próprio sangue: os índios devem lutar por seus direitos. Cerca de 3.000 guarani vivem hoje encurralados na aldeia Pirajuí - uma pequena área de 2.118 hectares. Por isso, há dois anos, reclamaram na Justiça a posse do território ancestral, que lhes foi roubado. Mas o processo não andou, porque os fazendeiros ameaçaram os técnicos da FUNAI, encarregados dos estudos exploratórios de demarcação, e também por pressão do governador do Estado, André Pucccinelli (PMDB - vixe, vixe!).

A entrada dos guarani na área indígena ocupada pela fazenda visava justamente acelerar o estudo antropológico, que representa a única forma de evitar os conflitos, porque é ele que vai determinar quais são as áreas indígenas e quais não são. No entanto, pistoleiros expulsaram os índios: “Eles chegaram atirando balas de borracha. Derrubaram a gente no chão, bateram, chutaram, gritando: Aqui não é terra de bugre, essa terra tem dono”.

Impedidos assim de reverenciar seus mortos, lá enterrados, os guarani se dispersaram na mata. Quase todos retornaram à aldeia Pirajuí, com ferimentos e hematomas no corpo. Menos os dois professores, que desapareceram. No dia 7 de novembro, o cadáver de um deles, Genivaldo, foi encontrado no córrego Ypo’i, enroscado ao galho de uma árvore, com duas perfurações no corpo. O outro, até hoje, não foi localizado.

Os índios encaminharam documento ao Ministério Público Federal (MPF), divulgado ontem, dia 21, na comunidade virtual ‘literatura indígena’, pelo guarani Chamirin Kuati Verá, denunciando “a violência armada dos fazendeiros” e indicando ao procurador Thiago dos Santos de Luz os nomes dos criminosos: Joanelse Pinheiro, Toninho e Blanco. Enquanto aguardam a resposta, cantam e rezam: Ore roimé nderehe’ym.

A despedida

Quem contou tudo isso foi Avá Guyrapá Mirim, na conversa que mantivemos durante os intervalos da Conferência Nacional de Educação Indígena em Luziânia. Ele pediu que não fosse publicado seu nome em português, para evitar represálias. Deu mais informações.

Genivaldo, 21 anos, casado, pai de um filho, ensinava informática. Seu primo, Rolindo, 28 anos, com quatro filhos, era professor da quarta série. Ambos estavam concluindo o Curso Ará Verá de Magistério Guarani-Kaiowá. Suas respectivas mulheres estavam em adiantado estado de gravidez. Um dia, visitaram com elas as sepulturas dos avôs, dentro da fazenda, e começaram a sonhar em recuperar a terra para lá viverem com suas famílias. Uma das filhas de Rolindo, de dez anos, acompanhou o pai na visita ao túmulo do avô e na retomada da terra.

Numa mensagem escrita numa folha de caderno, em português, sua segunda língua, Rolindo se auto-definiu: “Eu sou índio guarani, uma pessoa de muitas perguntas, gosto de ouvir os mais velhos, os conselhos, as histórias das vidas que as pessoas idosas levaram na época que os fazendeiros chegaram no lugar em que elas habitavam. Para ser feliz hoje, tudo estes pensamentos que é a nossa realidade deve ser registrado ou feito no papel para que as crianças possam pelo menos ouvir, relembrar ou até mesmo conquistar”. A frase faz parte de um banner denunciando sua morte.

Seus colegas professores Guarani Kaiowá escreveram uma mensagem de despedida, lida na Conferência, na qual dizem: “Os dois desapareceram. Não viverão nas terras que queriam viver, não vão mais fazer roça para alimentar seus filhos, não vão mais educar suas crianças, não vão mais dançar quaxiré (ritual de festa Guarani), não vão fazer novas rezas, não vão ser tamõi (avós). Não verão a lei se cumprir. Porque ela demorou muito, muito mais que a bala que tirou a vida deles”.

O silêncio

O que ainda surpreende é o silêncio espantoso, quase cúmplice, da mídia de circulação nacional, tanto sobre o assassinato dos professores guarani, quanto em relação à Conferencia Nacional de Educação Indígena, que desenhou as diretrizes para as escolas indígenas, num evento em Brasília, aberto pelo ministro da Educação Fernando Haddad, com a presença de centenas de índios, falando dezenas de línguas diferentes. Se isso não for notícia, eu não sei o que é jornalismo.

A Conferência aprovou a criação dos chamados ‘territórios etnoeducacionais’, que reorganiza a educação escolar bilíngüe e intercultural em novas bases, respeitando a territorialidade dos povos indígenas. Quanto ao território guarani, vale a pena transcrever as palavras de Ava Guyrapá Mirim, encerrando nossa conversa:

“Vamos continuar a luta pela terra, isso já está no nosso espírito, achamos força na reza, na dança, no canto. Nossa esperança maior agora é Nhanderu, que vai nos orientar e dar força para recuperar a terra. Os dois morreram, mas o sonho dos guarani não desaparece jamais”.

O Brasil generoso e solidário precisa manifestar sua indignação, exigindo a punição dos criminosos e apoiando a luta dos guarani pela recuperação de suas terras. As vozes do Brasil solidário precisam sufocar a truculência do outro Brasil: o Brasil covarde, o Brasil indiferente, o Brasil cínico, o Brasil omisso, o Brasil que continua a tratar a população indígena de forma colonialista.

Conforme informações de Ava Guyrapá Mirim, oito dias depois do assassinato de Rolindo, sua mulher, grávida, pariu um filho. Uma semana depois, foi a mulher de Genivaldo quem deu à luz uma criança. Os dois órfãos, ainda sem nome, trazem uma mensagem de esperança, de que o povo guarani não será varrido da face da terra.

* O professor José Ribamar Bessa Freire coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ), pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO) e edita o site-blog Taqui Pra Ti.

Fonte: ANDES-SN



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