Em 15/10/2010
Cara Professora, Caro Professor,
O trabalho intelectual se diferencia da experiência imediata porque a questiona e busca compreendê-la, interpretando-a, pesquisando-a e refletindo sobre suas origens, formas, sentidos e direções possíveis ou necessárias. É um trabalho para transformar os dados imediatos e as questões postas pelas experiências, elaborando conceitos e práticas que explicitem a sua inteligibilidade.
Como negação do imediato dado, como descoberta, interpretação, invenção e criação, o trabalho intelectual, enquanto pensamento e práxis, está sempre inserido no contexto sócio-cultural que o gera, possuindo uma característica e uma exigência que lhe são próprias e decisivas: a necessidade e a capacidade de pensar a si mesmo, a busca de conhecer seus caminhos, limites e novas posssibilidades, sendo por isso intrinsecamente autoreflexivo e crítico.
É avesso ao princípio da autoridade, pois não pode abandonar a perspectiva de se reconstruir, no contato com as experiências sócio-culturais que o suscitaram, suscitam e se articulam entre si. Interdisciplinar por vocação e não por decreto, temporal por essência e não por exigências externas de “progresso”, o trabalho intelectual é – em cada momento histórico e na realidade social onde se insere – busca de liberdade (a autonomia do pensamento autorregulado), de rigor (o controle metódico de seus passos) e de emancipação, isto é, de obter clarificações do sentido das nosssas experiências sociais e históricas.
No movimento dialético entre fatos e conceitos e de ambos às práticas diferenciadas, a reflexão crítica efetua-se em duas dimensões internamente articuladas: a da história das ideias e práticas científicas, técnicas, artísticas, literárias e filosóficas (seu movimento de autorreflexão metódico) e a da história das experiências culturais, sociais, políticas e econômicas que a suscitaram em momentos determinados. Essa reflexão mergulha ainda na história cultural das experiências de onde nasce como questionamento; mergulha na sua própria história interna de autotransformação, seja movido pelo impasse ou pela sugestão das ideias, seja movida pelo acaso, criador de suas descobertas; e mergulha na história social através das instituições onde se realiza e se transforma, tentando transformá-las também. Não indaga apenas o que se pode saber, mas, sobretudo, o que há para saber. Não se satisfaz em se realizar no interior de uma instituição, mas indaga o que é esta instituição, por que e para que ela existe.
Desde sua fundação em 1981 – na época ainda Associação – o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior, ANDES-SN, tem proposto diretrizes e embates para a construção de uma Universidade que promova esta concepção de trabalho intelectual, que só é possível com autonomia, democracia e a garantia de expressão da mais ampla diversidade de visões de mundo. São igualmente essenciais a indissociabilidade entre Ensino, Pesquisa e Extensão e condições dignas de vida e trabalho.
Tendo como um de seus pilares o estímulo à reflexão crítica, a Educação de qualidade que defendemos é direito social inalienável, sendo obrigação do Estado prover os meios para o seu pleno exercício.
As últimas décadas foram marcadas pela implantação de políticas contrárias a essa nossa concepção de trabalho acadêmico e intelectual, ameaçando seu exercício, com graves repercussões no desenvolvimento econômico, social, político e cultural do país.
A pressão sobre cada um de nós para “produzir”, os métodos e critérios dos organismos financiadores e dos gestores das universidades, o enorme aumento da intensidade de trabalho, acompanhado do alijamento do poder de deliberação sobre os rumos do nosso trabalho, são algumas das características desse processo de tentativa de reestruturação e controle dos afazeres acadêmicos.
Instaura-se a “concorrência” no lugar da cooperação, a fragmentação do conhecimento e da produção acadêmica e a busca de soluções individuais para a manutenção da pesquisa. Ao mesmo tempo e no mesmo movimento, desqualifica-se a atividade de Ensino, uma das principais contribuições das universidades à sociedade; em muitas instituições esta atividade adquire carácter “punitivo”: quem não corresponde a critérios de “produtividade”, frequentemente advindos de fora da instituição, violando sua autonomia, deve receber maior carga didática.
As agências financiadoras não estão dispostas a debater amplamente a escolha e a implantação de critérios e métodos de avaliação, frequentemente balizados em aferições individuais, dificultando a identificação clara da natureza desses critérios e métodos. Têm sido utilizados meios meramente quantitativos para forçar, via pressão e constrangimento de recursos, verbas e progresso funcional, sua aceitação. Ora, avaliação – saber como, por que, para que e para quem – é a reflexão crítica acerca de um projeto dado. Deve se dar de forma pública e democrática pelos responsáveis pelo trabalho executado e a partir de um projeto estabelecido. Avaliação não é a opinião que algum nível gerencial ou institucional tem sobre o resultado e a destinação do nosso trabalho, ainda mais quando não temos o poder para influir nos rumos do projeto que devamos executar.
Esta situação é agravada pela insegurança em relação à Previdência, pelo desrespeito aos aposentados, por propostas nada acadêmicas de carreira docente e pela tentativa de aprofundamento da privatização da Universidade Pública, como o “pacote da autonomia universitária”, baixado pelo governo federal via medida provisória e decretos.
Sabemos que muitos de nós não concordamos com os rumos que tentam impor ao trabalho acadêmico no Brasil. Por outro lado, também sabemos que é inviável e insuficiente a resistência isolada ou individual.
O ANDES-SN considera essencial continuar o embate pelo padrão de trabalho acadêmico que considera fundamental para que uma universidade mantenha a produção de reflexão, conhecimento, ensino e extensão de carácter crítico e socialmente referenciados. Por meio de nossas seções sindicais em cada universidade e da nossa estrutura nacional, consideramos importante discutir diagnósticos e aprofundar a comprensão das dificuldades do cotidiano docente para propor ações concretas de resistência e reversão das políticas que tentam impor os organismos do Estado, os gestores da universidade e as agências financiadoras nacionais e estaduais.
Não queremos a domesticação do inédito, a neutralização do instigante, o controle do que pode ou não ser pensado. Queremos, isto sim, com a participação ampla de cada colega docente, potencializar debates, ações e providências que nos tornem, individual e coletivamente, sujeitos da história e dos rumos do nosso trabalho.
Diretoria do Andes-SN |