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  28/08/2019 - por Sérgio Freire



Eu li o documento do FUTURE-SE. Faço algumas considerações, partindo de pressupostos que entendem a Universidade como pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada.

Meu lugar de fala, ainda, reconhece igualmente que precisamos rediscutir urgentemente várias questões relativas ao ensino superior público de forma ampla, democrática e com a participação de quem faz, de fato, a Universidade. Dito isso, segue o texto.

FUTURE-SE

O Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (FUTURE-SE) se apresenta como tendo por finalidade o “fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) por meio de parceria com organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios.”
A linguagem precisa sempre ser localizada. Fortalecer a autonomia financeira, nesse documento e na lógica do governo federal, significa criar formas de financiamento outras que não o repasse regular de recursos necessários, visando a reduzir na sequência as transferências obrigatórias.

As Ifes precisam buscar novos recursos, diz o documento. É um modelo de captação de financiamento por meio de parcerias e Organizações Sociais (OS). Sob o rótulo de autonomia, garantindo relativizações, o que se quer é inserir as Ifes na lógica das empresas privadas e, portanto, na lógica de mercado.

Os três eixos

O programa terá prazo de duração indeterminado e a participação das Ifes será por meio de adesão. Submeter as Ifes a um processo de adesão voluntária em tempos de contingenciamento de recursos é, como já foi posto pela Andifes, prematuro. É quase uma chantagem. 

Pergunta-se: como ampliar a autonomia de gestão se o modelo proposto traz para dentro da Universidade o modelo das OS, que praticamente terceiriza a administração?
A OS é um tipo de associação privada, com personalidade jurídica, que recebe subvenção do Estado para prestar serviços de interesse público. Trata-se de uma entidade privada, repetimos, apta a receber determinados benefícios do poder público, tais como dotações orçamentárias, isenções fiscais ou mesmo subvenção direta para a realização de seus fins. Parece interessante à primeira vista, dada a reconhecida lentidão e às amarras administrativas a que estão submetidas as Ifes hoje e que, sem dúvidas, precisam ser rediscutidas. No entanto, há desdobramentos para além desse encantamento inicial que precisam ser mais bem discutidos.

As Ifes que aderirem ao Programa deverão adotar as diretrizes de governança que só serão definidas pelo Ministério da Educação futuramente. Aderir e adotar diretrizes futuras é assinar um cheque em branco. Na verdade, não tão em branco porque o modelo proposto sinaliza a lógica de mercado e os seus desdobramentos. É preciso, por exemplo, segundo o documento, fazer a “gestão de riscos corporativos”, o que insere as Ifes dentro de uma lógica empresarial que é, no mais das vezes, incompatível com a finalidade social de uma universidade pública.

O FUTURE-SE se propõe a ser operacionalizado por meio de contratos de gestão, firmados pela União e pela Ifes com uma OS. Essas organizações devem ter suas atividades dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à cultura e devem estar relacionadas às finalidades do Programa. A lógica da OS, repete-se, é a lógica da terceirização da administração. Há vantagens e desvantagens e elas são entendidas de formas diferentes, dependendo da visão de universidade que se tem.

As OS podem, em princípio, acelerar a velocidade de procedimentos lentos devido à regulação pública vigente. Ao tempo que desburocratiza, afrouxa os mecanismos de controle do dinheiro público. E, ao mesmo tempo ainda, a inserção das Ifes nessa lógica traz junto todos os desdobramentos do modelo da iniciativa privada como, por exemplo, a precarização de recursos humanos e o estabelecimento de índices de produtividades e metas de desempenho muitas vezes incompatíveis com os objetivos sociais das universidades.

Quanto ao fomento ao Programa, a União e as Ifes poderão fomentar a OS por meio de repasse de recursos orçamentários e permissão de uso de bens públicos. Está previsto no documento que haverá transferência de recursos públicos e de patrimônio às organizações, bem como transferências de recursos para fundos de investimentos que fomentarão suas ações. Se as OS falharem em levantar recursos para a gestão contratada, está garantido no documento que o MEC poderá socorrê-las, destinando recursos como forma de ação supletiva. Mais recursos públicos transferidos para o setor privado, portanto. Cereja do bolo: o Ministério da Educação poderá participar como cotista de fundos de investimento. Esses fundos de investimento deverão ter natureza privada e a integralização das cotas nos fundos deverá ser autorizada em ato do Poder Executivo, ouvido o Comitê Gestor do Programa. Será facultada a cessão de servidores titulares de cargo efetivo em exercício na instituição federal de ensino superior, que exerçam atividades relacionadas ao contrato de gestão, à Organização Social. Caberá à OS o ônus pela remuneração ou pelo salário vinculado ao cargo do agente cedido, acrescidos dos encargos sociais e trabalhistas, sem prejuízo de suas atribuições funcionais, desde que cumprindo a carga horária de aulas. Mais trabalho a já assoberbada tarefa de docentes e técnico-administrativos das Ifes.

Governança, Gestão e Empreendedorismo

As diretrizes propostas e apontadas no Eixo 1, Governança, podem ser implementadas – de fato, muitas já são – sem a necessidade do modelo das OS. A lógica da implementação de start-ups, por exemplo, prevista no documento, é muito atraente para algumas áreas do conhecimento. No entanto, é bastante incompatível com algumas outras áreas, principalmente na grande das humanidades.

O sistema de captação de recursos externo é claramente diferente e depende da vocação e potencial de cada área. Para que fosse implementado de forma a contemplar todos os setores, seria necessário se discutir uma espécie de fundo solidário, de onde saíram recursos para subsidiar áreas com baixa capacidade de captação.

Pensa-se no documento, claramente, na universidade pública produzindo produtos a serem vitrinizados e comercializados. As Ifes que aderirem ao Programa serão autorizadas a conceder a pessoas físicas ou jurídicas o direito de nomear uma parte de um bem, móvel ou imóvel, de um local ou evento, em troca de compensação financeira. O documento chama essa prática de naming rights. Será possível, por exemplo, ter um auditório Coca-Cola ou um bloco Microsoft, como forma de captação de recurso.

Será também permitida a criação de Sociedades de Propósito Específico (SPE) nas Ifes, garantindo que um percentual do lucro auferido pelas SPE retorne para as Ifes. Uma Sociedade de Propósito Específico é de natureza empresarial cuja atividade é bastante restrita, podendo, em alguns casos, ter prazo de existência determinado. É normalmente utilizada para isolar o risco financeiro da atividade desenvolvida. Resumindo: são empresas dentro da Universidade.

Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação

As Ifes que aderirem deverão aumentar a interação com empresas no intuito de atender às demandas desse setor por inovação. Novamente a ênfase do programa se volta às áreas de tecnologia, relegando as humanidades, por sua natureza, a um segundo plano temerário, bem como pensa a Universidade para atender a determinado segmento da sociedade.

O professor em regime de dedicação exclusiva, inclusive aquele enquadrado em plano de carreiras e cargos de magistério superior, poderá exercer atividade remunerada de pesquisa, desenvolvimento e inovação na OS contratada. A remuneração recebida em razão da elaboração, execução e êxito de qualquer programa desenvolvido no âmbito do Future-se é de natureza privada, não integrando a remuneração do servidor, para nenhum fim, nem gerando reflexos de qualquer natureza na remuneração do cargo, inclusive previdenciários.

Mas receber remuneração adicional só será possível se o professor cumprir sua carga horária ordinária. Na prática, o professor poderá receber recursos além do salário. Registre-se que a jornada de trabalho já é nominalmente de 40 horas – até mais, na prática. Como participar sem prejudicar suas atividades de origem é uma pergunta que precisa de resposta.

Eixo 3: Internacionalização

O MEC propõe cursos de idiomas para os docentes por meio de parcerias com instituições privadas, sempre elas, para promover a publicação em periódicos no exterior. O Ministério ignora as ações existentes nas próprias universidades, como Centros de Línguas e o ISF, ambos bastante eficientes na Ufam.  É previsto o intercâmbio entre universidades nacionais e internacionais, trazendo para as universidades brasileiras professores estrangeiros em fluxo contínuo de intercâmbio, fomentando a pesquisa e buscando uma melhor colocação nos índices e rankings internacionais. Está na proposta também a oferta de bolsas em instituições estrangeiras de modo a contemplar estudantes com alto desempenho acadêmico. O MEC, no entanto, não menciona que isso só será possível se houver recursos captados pela Ifes. Ainda dentro desse Eixo, serão afrouxadas as regras para reconhecimento de cursos EAD feitos no exterior.

Fundo da autonomia financeira das IFES

Para que o programa seja viável, deverá ser constituído um Fundo, vinculado ao MEC, com a finalidade de possibilitar o aumento da autonomia financeira das Ifes, bem como ampliar e dar previsibilidade ao financiamento das atividades de pesquisa, extensão, desenvolvimento, empreendedorismo e inovação. Os imóveis de propriedade das Ifes participantes poderão ser destinados à integralização de cotas no fundo. É o patrimônio das Ifes financiando a captação de recursos para elas próprias.

Constituirão, segundo a proposta, recursos do Fundo, as receitas decorrentes de prestação e venda de serviços compreendidos no objeto da Ifes. Esses serviços incluem estudos, pesquisas, consultorias e projetos, bem como a comercialização de bens e produtos com a marca das instituições apoiadas, a alienação de bens e direitos, as aplicações financeiras que realizar, direitos patrimoniais tais como aluguéis, comodatos e concessões e exploração de direitos de propriedade intelectual.

Diferentemente do que se especulou, não se fala em cobrança de mensalidades na graduação, mas se explicita claramente as matrículas e mensalidades de pós-graduação lato sensu nas universidades federais como parte do financiamento desse fundo.

Comitê Gestor

O Programa deverá ter um Comitê Gestor que estabelecerá as diretrizes das ações e realizará avaliação anual de desempenho institucional para análise do atingimento dos objetivos e metas pactuados no Plano de Ação.

O Comitê assessorará as Ifes participantes na condução da política de governança e definirá o critério para aceitação das certificações para fins de participação no processo eleitoral dos reitores, que não é detalhado no documento. Sabe-se de antemão que está sendo exercitado o desrespeito à vontade democrática nas nomeações de vários reitores não escolhidos.

O Future-se foi submetido à consulta pública por um curto tempo e sem muito espaço de crítica. Após esse período, segundo o documento, a equipe do MEC trabalhará na consolidação das contribuições em propostas normativas para que sejam iniciados os processos de implementação legal.

No trâmite legislativo, a atenção e embate continuam necessários para os que compreendem a universidade da forma que compreendemos: pública, gratuita e voltada para a sociedade. É isso. Por enquanto.

*Sérgio Freire é doutor em Linguística pela Unicamp E professor associado 3 da Faculdade de Letras da Ufam.



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